quarta-feira, 5 de setembro de 2007

2. DA ERRÂNCIA DOS OBJECTOS AO ALEATÓRIO: O ENCONTRO COM A OPERETA BERNSTEINIANA

Produto de uma equipa de criativos ligada à Broadway, durante os anos cinquenta do século vinte nova-iorquino e em que o reconhecido maestro e compositor teve substancial preponderância, escutei-a ao longo de dezasseis anos de um modo cíclico porque costumava regressar a ela, ao chegar o mês de Setembro, num ritual muito particular, onde uma mistura de saudade e pertença me exigiam retomasse aquelas vozes, aquelas personagens, aquele humor e os tornasse meus, e os fizesse eu: funcionava para mim como um enquadramento temático adequadíssimo à minha situação precária de professor contratado. Tal interacção estética, musical e ritualista começara nos primeiros anos da década de noventa, num momento em que circunstâncias especiais proporcionaram que uma última edição revista de 1989, interpretada pelo London Shymphony Chorus e pela London Shymphony Orchestra, numa gravação de 1991, da Deutsche Grammphon, me viesse literalmente parar às mãos, oferecido por um vizinho, após alguns anos de, presumo, parda audição, a uma amiga íntima que, por sua vez, sabendo-me o melómano apaixonado que de facto sou, mo ofereceu a mim.

Iniciei, a partir de então, um descomprometido processo de escuta e estudo desta opereta, desenvolvendo particular entusiasmo por ela ao sentir-lhe as vibrações satíricas, a ironia com que, também do ponto de vista musical, estava revestida, sobretudo lá, onde a sátira mordaz dos textos adaptados e vertidos na língua inglesa ‘da Big Aple’ melhor se fundia com a construção musical para descrever as peripécias burlescas (a abundância da crueza humana, a míngua de actos de compaixão) das personagens voltaireanas e com elas me sentir irmanado, tal como elas «bípede sem penas». Desde o primeiro momento, fiquei indelevelmente marcado por esse encontro, à superfície fortuito, mas que continha certamente um fundo de pouca ou nenhuma casualidade, porque a perda do paraíso, seja ele qual for, e a errância, atravessando toda a sorte de provações e sofrimentos que uma imaginação humana pode conceber e catalogar, à procura incansável do amor, e, portanto, de parte da bem-aventurança possível neste mundo, constituem, conforme fui experimentando pessoalmente, condição essencial congénita ao ser humano. São-no em Cândido, que é uma representação, um texto, e essa condição nele representada, por ele espelhada, apesar de todas as decadências e degradações, é pouco passível de caricatura. Do meu ponto de vista, se há limites numa apropriação autobiografista do impacto que uma obra tem sobre um indivíduo em particular, não pode haver indiferença relativamente às implicações autorais sobre seja que obra for e é por isso que, em Voltaire, para além do detectável escopo ideológico de uma crítica que varre a acção maligna e danosa de muitos dos poderes no seu tempo, é impossível não existir, no cerne do estatuto autoral, uma clara partilha vestigial da natureza verdadeiramente sofredora, brilhante e imaculada, do seu protagonista: tal como o seu Cândido, Voltaire pôde sofrer as dolorosas barreiras impostas ao seu primeiro amor. Quando, não já Voltaire, mas ainda François, parte em missão diplomática com o embaixador, o marquês de Châteauneut, para Haia, encontra, logo que lá chega, uma moça: Olympe Runoyer, a Pimpette, com quem teve encontros amorosos e com quem queria coabitar em França. François escrevia cartas apaixonadas, dizendo: "não há dúvida de que irei amá-la para sempre." O caso foi descoberto. Mandam-no de volta para a casa de seu pai. Entre todas as penas e todas as crueldades, eis que se confronta com a contrariedade de ser contrariado, passe o pleonasmo, justamente no ponto em que será impossível um maior acordo com a vida e com o melhor dos mundos, na frescura da vida. De igual modo, como Voltaire, que se vê reflectido nos seus títeres e com eles dialoga impiedosa ou complacentemente, habituei-me a perder-me, a rever-me e a reencontrar-me, também eu, naquele Cândido de pendor mais lírico no espectáculo bernsteiniano, crente a espaços, entregue e confiado, nos simplistas ensinamentos do Dr. Pangloss, levados ad absurdum. Não era somente Cândido que acreditava na indeclinável bondade do ser humano. Porque eu escutava e me impregnava de toda aquela música, Cândido jamais continuaria só: ambos poderíamos pensar e cantar concordes que até do mais completo mal se pode extrair alguma espécie de bem. Ouvindo a opereta, confrontado com o mal, com os seus desgostos e com as suas perdas, desenvolveu-se, entre nós, verdadeira irmandade experiencial. Este mundo só se converteria, efectivamente, no melhor dos mundos possíveis, se o homem não interferisse, se nada de maligno emergisse dele, o que é quase impossível.

4 comentários:

Mallika Garg disse...

Thanx man!! i appreciate it....i checkd ur blogs,really artistic n impressive!!
thou i could not understand the language as i speak only english n hindi but i could figure out the crux of it!!
amazing....takecare \m/

aldepe2000 disse...

thank you for your attenttion

Aliansi Demokrasi untuk Papua disse...

thank you for your attention
http://andawat-papua.blogspot.com

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