quarta-feira, 5 de setembro de 2007

5. DUAS OBRAS. DOIS ENCONTROS. O SUPORTE FÍSICO DO «CÂNDIDO» BERNSTEINIANO

Livro e suporte musical, dois encontros, portanto, regidos pelo signo do aleatório, do aparentemente fortuito, a partir dos quais vida e objectos, na sua dimensão física, conteudística e estética, se fundem harmoniosamente, partilhando, ela com eles e eles com ela, todos os paradoxos e todas as consubstanciais tonalidades de enquadramento num tempo e num contexto específicos: não há recepção de uma obra literária ou outra fora da vida concreta e uma e outra, recepção e vida, entretecem necessariamente um diálogo com implicações e alcances imprevisíveis. Por isso mesmo, aqueles foram para mim, quer num caso, quer noutro, encontros inesperados e marcantes.

Tomando em consideração o suporte físico da opereta que me foi oferecida, visto a esta luz, à luz do trabalho que agora se efectiva, mesmo ele parecia também, desde logo, conter em si mesmo, subliminal, uma remissão para o primeiro nível da mensagem contígua ao conto e ao espectáculo. Basta antecipar o que foi o trânsito (a precisa circulação errante, do artefacto, tendo em conta a sua dimensão física e palpável, antes mesmo do ponto de venda, tendo passado pelas mãos do circuito de pós-produção, depois as mãos que catalogam, que pegam e tocam, mas não compram, mais tarde as que tocam e adquirem, mais tarde ainda outras que recebem como dádiva e, finalmente, provisoriamente definitivas, as minhas, que manuseiam, observam possuem) para sentir haver um claro vínculo com o conteúdo mesmo deste «Cândido». E as minhas mãos começaram por tocar – contendo uma segunda caixa quadriangular plástica articulada, onde dois CDs se integram, com um livrinho de apresentação da obra, dos artistas e dos textos em versão trilingue (alemão, inglês e francês) – uma primeira pequena caixa em cartão fino, acetinado, de cor verde e encarnada, num recorte em escada, em cujo verso dispõe-se, em lista, a ficha técnica e em cuja frente, além de uma ficha técnica mais geral, destacando os nomes mais importantes, se representam vários ícones dispostos como se sobre plataformas ou degraus, remetendo para alguns dos elementos-chave da narrativa de base: em posição mais inferior que central, pode ver-se, em destaque, o eldoradesco carneiro de ouro, assente nas quatro patas sobre um dos paralelogramos de um sólido paralelepípedo amarelo, está em equilíbrio instável, uma vez que o único ponto de apoio é a escassa linha de uma das suas arestas; por baixo do carneiro, destacado e sobreposto na base do sólido já referido, um outro sólido de cor branca onde ressalta uma figura pela metade, prateada, quase imperceptível, de uma mulher sentada, de costas, lendo, na qual se percebe a riqueza da cadeira e das vestes setecentistas; por trás dele, do carneiro eldoradesco, um coqueiro prateado: coqueiro e carneiro parecem sublinhar toda a simbologia do Novo Mundo e das suas promessas; em posição inferior, e mais à esquerda, vê-se aquilo que parece ser um soldadinho de chumbo, de cor prateada, com a espada, as meias, o casaco e a peruca setecentistas; em posição cimeira, mais à direita, uma outra figura humana desarmada, igualmente em vestes setecentistas, onde predomina o amarelo-dourado e o encarnado e que poderá representar Cândido: está numa expressão de amplitude, declamatória, sugerindo quer uma abertura de espírito ingénua ao mundo, quer um estado de precaridade, precaridade essa que é dada sobretudo pelo material plástico vulgar de que aparenta ser feito; todas as figuras surgem infantilmente miniaturadas, permitindo antecipar, ler aí, precisamente o burlesco e o cómico e há uma seta amarela às pintas negras curviforme que, ladeando-as, às figuras, pela direita, e começando a partir do canto superior direito desce e aponta para baixo, sugerindo movimento e sublinhando o que será um meteórico percurso descendente. O artefacto estava nas minhas mãos, único, meu, intimo. Era preciso agora desbravar a música.
Todo o processo de encontro e de descoberta destas obras teve ressonâncias e implicações várias e de vária ordem com o que na obra voltaireana há de verdadeiramente nuclear do ponto de vista tonal e que é justamente esse carácter errante e deambulatório de uma personagem, Cândido, que, por uma razão miserável e ridícula, é expulso do paraíso – e o paraíso era o próprio lar onde nascera – iniciando uma errância pela qual vai confrontar, infirmando-a, toda uma filosofia de base que houvera bebido, como um colostro inicial: de que ao determinar-se a criar o universo, Deus seleccionou o melhor dos mundos possíveis e que se a ciência divina oferecia ao Criador um imenso leque de possibilidades de escolha, a sua bondade infinita levou-o a optar pelo melhor. Nem tudo nesta filosofia poderá ser ingenuidade. Pode ser também fulguração, loucura, pureza imaculada. O certo é que na etimologia da palavra Cândido encontramos outras acepções além da que, hoje, prevalece, a ingenuidade. Bastará uma consulta mínima de um bom dicionário de latim, para podermos surpreender conceitos intocáveis, ainda, do ponto de vista semântico, carregados ainda de positividade, de brilho, até de força poética incandescente, pode dizer-se. Verbos, adjectivos, advérbios, a riqueza morfológica em torno deste conceito pode impressionar os espíritos mais impreparados. Candeo, es, ere, ui, v. int. 1. Ser duma brancura brilhante, brilhar, brilhar como a neve. 2. Aquecer até se tornar branco, estar em brasa, queimar. 3. Ser da cor do fogo (a púrpura). 4. Estar irritado, abrasado em cólera. 1. Candidatus, a, um, (candidus), adj. vestido de branco // candidatus, i. m. 1. Candidato, pretendente a um cargo público. 2. (Sent. Geral). Pretendente, aspirante a // eloquentiae candidatus, Quint., aspirante à eloquência, candidato a orador // candidata, ae, f. Candidata (ao sacerdócio) Obs. O candidato vestia a toga branca. 2. candidatus, us (candidus), m. Candidatura. Candide (candidus), adv. 1. De cor branca. 2. Com candura, de boa fé, com simplicidade, simplesmente. Candĭdus, a, um, (candeo), adj. 1. Branco brilhante, branco de neve. 2. Vestido de branco // candida turba, Tib., multidão vestida de branco. 3. Brilhante, resplandecente, belo, formoso // candida Dido, V., a radiosa Dido. 4. Feliz, favorável. 5. Franco, leal, sincero. 6. Claro, nítido, límpido, puro (voz, estilo). Candor, oris (candeo) m. 1. Cor branca viva // equi condore nivali, V., cavalos brancos como a neve. 2. Brilho (do céu, do Sol). 3. Calor ardente. 4. Beleza (das pessoas). 5. Clareza, limpidez (do estilo). 6. Sinceridade, boa fé, franqueza, inocência, candura.

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