quarta-feira, 5 de setembro de 2007

12. A QUESTÃO DA MÚSICA - ESBOÇO DE UMA CONCLUSÃO

O «Cândido» que a equipa da Broadway constituiu provocou-me, remetendo-me para uma construção de saberes mais específicos quanto ao tempo da criação, aos autores e às obras musicais e justificou, confirmando-o, o meu enorme interesse pela música em geral e pela clássica ou classicizante em particular. Aquela gravação concreta entroncou também num meu não menor interesse pela literatura, pela história, pela filosofia, pelo valor estético subjacente afinal a quaisquer textos que os séculos foram revestindo também de música: veja-se a prodigiosa amplificação lírica que, entre os fins do século XVI e inícios do XVII, Monteverdi, no seu ciclo madrigalístico mantuano, faz musicalmente de Tasso, ao mesmo tempo que, de modo a muitos títulos revolucionário e inovador, ajudou a desenvolver e a transformar todos os aspectos da música com que lidou ao longo da vida.

Por outro lado, foi o mesmo «Cândido» que me permitiu um alargamento de percepção de um sistema de referências cruzadas, de complexas remissões e recombinações dentro das artes. Pode dizer-se que muitas vezes os textos esperaram séculos pela música: os Carmina goliardescos (se eventualmente a tiveram no século XIII, tiveram-na de novo no XX) e o mesmo para os ainda mais antigos poemas de Catulo, os Catuli Carmina: foi preciso que esperassem afinal pelo revivalismo pagão orffiano, imbricado, sabêmo-lo bem hoje, nas promessas eufóricas de supremacia sem remorso com que, ecoando algum Nietzsche e algum evolucionismo transposto para a ordem e a lógica das relações pessoa-pessoa, povo-povo, emergira o nacional-socialismo alemão; coisa semelhante e diversa, até certo ponto, do que se passou com o Shostakovich positivo e optimista inicial, quando, paralelamente às suas obras «institucionais» soviéticas, corria o sangue e, patriótica, a história se revestia de uma nova teleologia, de uma escatologia nova.

A fome de beleza, de sublimidade, é-me congénita e penso que por mais objectivo que visasse ser este meu trabalho, na medida em que lidou com o fenómeno complexo e rico que a constituição de um espectáculo como o «Cândido» pressupôs, nos cortes, nas obediências e nas concessões exigidos pelos vínculos históricos do mesmo espectáculo com o conto voltaireano comparatisticamente a ter em conta, ele foi também, e antes de mais, um olhar pessoal e a pessoal expressão dos efeitos que a arte necessariamente desencadeou na minha recepção.

Foi sobre a intemporalidade do fenómeno musical, em sentido puro, que o meu interesse recaiu, para além das distinções e classificações com que os séculos mais recentes organizaram o espesso acervo musical, primeiramente eurocêntrico e ocidental, mas que inclui agora, em plano de igual dignidade, as mais gerais e específicas manifestações musicais planetárias. A questão de reconhecer rigidamente neste «Cândido» um musical, uma opereta (apenas por questões operativas privilegiamos esta última classificação), uma ópera leve, uma ópera cómica ou simplesmente uma ópera é, creio, completamente impertinente porque essa pergunta não pode ser colocada, sem se tornar ridícula, a obras como Die Zauberflöte mozartinana ou La Belle Hélène, offenbachiana, embora carregadas de humor, ela, como outras, não deixam de recobrir questões importantes e sérias.

Resta a nítida consciência de que antes de haver quaisquer classificações e delimitações temporais – música sacra ou profana, música antiga, música barroca, música romântica – há a música. Reconstituir uma forma em que texto-poeisis e música são aquela totalidade artística indissolúvel, não passível de considerações em separado, é hoje matéria de constatação e também de fruição. Fora de veleidades classificativas, a música, quando é sujeita a arqueologia, ressuscita efectivamente, mas há impossibilidades e excessos, como lembra, aliás, Claus Clüver, ao situar (e demarcar-se) criticamente dos critérios classificativos das belas artes que, há cem anos, H. Butcher desejaria ter já visto recobertos por Aristóteles, coisa que não estaria de todo ao alcance do filósofo proceder: «Mesmo se Aristóteles tivesse feito tal classificação dos géneros poéticos, os seus critérios teriam sido de difícil aplicação à produção poética do tempo de Butcher, pois teriam inevitavelmente ligado considerações «literárias» e considerações «musicais», como as chamaríamos hoje. Para Aristóteles, não teria sido «lógico» desenvolver teorias independentes para a poesia e para a música – simplesmente porque na prática as duas artes eram então inseparáveis.» (Claus Clüver, Estudos Interartes: Introdução Crítica, Tradução H. Buescu, 2001).

A música de que se revestiu este «Cândido», pelo seu encanto e por vezes sublimidade, sobretudo nos transportes líricos onde a humanidade do protagonista se desvela, redime todo um trajecto anti-pícaro e anti-ulisseu das personagens, afinal, também tantas vezes dos homens concretos, capazes de se comportar tão candidamente quanto aquelas, num mundo aliás obeso de velhacarias. Vemos que somente após uma difícil demanda é que as personagens se regeneram moralmente, e regeneram-se na mesma proporção em que decaem e apodrecem, pelo cansaço, pela doença e pela velhice; somente após toda a espécie de sofrimentos às mãos dos homens, somente quando se decidem à recusa duma filosofia que omite e oblitera aquilo em que a vida também consiste, é que todos (Cândido, Pangloss, Cunegundes, a Velha Senhora, Martin, Paquette, Cacambo e o Irmão Giroflée) se resignam, não à desgraça, mas a uma vida só inteligível e suportável na medida em que se trabalhe e cultive o próprio jardim.

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