quarta-feira, 5 de setembro de 2007

11. A MULHER NO «CÂNDIDO» E AS «PINK-THIGS» DOS ANOS 50 NORTE-AMERICANOS

A Cunegundes bernsteiniana, na sua dimensão involuntariamente caótica e trágica, tem atrás de si, não apenas a obediência aos traços gerais da personagem originária, mas uma multidão de modelos de mulher que a um tempo povoaram os libretos de óperas famosas e os lugares-comuns mesmo dos mais célebres e consagrados romances. Mas há um dado contíguo ao período da génese do espectáculo bernsteiniano que me parece de não desprezar. Pense-se na ascensão da estrela Marilyn Monroe, consabidamente sôfrega pela fama, característica em que não estava só, que ocasionalmente baseou a sua estratégia de ascenção no uso conveniente e oportuno do outro. Lembre-se o episódio Joe DiMaggio, basebolista idolatrado, católico, e as condições que se pensa ter ele proporcionado, num casamento que durou dez meses, de branqueamento moral de um passado fotográfico demasiado expositivo da actriz, segundo o que alguns aventaram. No passado, ainda como anónima Norma Jean, cobrara cinquenta dólares ao fotógrafo Tom Kelley para ser fotografada nua, em poses sensuais e sobre um manto de veludo vermelho. Porém, ondas de moralidade à época varriam a sociedade norte-americana, como o código Hays de censura ou o início do período de “caça às bruxas” levado a cabo pelo senador republicano Joseph Raymond McCarthy, à frente do Comité das Actividades Não-Americanas. Arrolada pelas circunstâncias, objecto da cupidez dos vastos públicos, o facto era que Marilyn existia para alcançar a fama. Cada passo que dava, cada golfada de ar que inspirava e cada sorriso que debitava iam nesse sentido. Muitos não hesitarão em apontar como ponto alto da sua sexualidade a relação com as câmaras, o felino instinto que, à vista de uma objectiva ou à cintilação de um flash, a fazia metamorfosear-se numa torrente de simpatia e fotogenia e como encarnação dos sonhos do cidadão comum. Mas, apesar de a sua vida pública ser isso, a transmissão ao outro, isto é, a todos os outros que a idolatravam, pelo mundo fora, de uma imagem de sonho, a realidade de Marilyn assentava na argamassa de que são feitos os pesadelos. Por outras palavras, a criação de um mito de sucesso impossibilitava a harmonia em vida. O que me parece no tratamento da mulher no «Cândido» bernsteiniano é, por um lado, a impossibilidade de fuga ao retrato do posicionamento da mulher como condenada a factores de degradação múltipla e à queda, levada por circunstâncias a que fracamente poderá resistir e, por outro, ter implicações suficientes o facto incontestável de época que constituiu a sucessão de estrelas, a fabricação de mitos femininos, mal ou bem sucedidos, enquanto conservassem intactos os factores de encanto, sobretudo por parte da poderosa indústria cinematográfica de Hollywood. Ora, sinédoque da totalidade da mulher, são as pernas, as róseas pernas de todas as loiras promovidas e, portanto, o sintomático esvaziamento da pessoa por trás da loira a mitificar. Pertencerá aos anais dos anos cinquenta esta febre colectiva pela estrela-mulher, pelo seu carisma ou falta dele, mas indiscutivelmente pelas suas “pink thigs”. O mesmo esvaziamento da condição de pessoa, faz da Cunegundes bernsteiniana (aqui colocada em Paris) passível de um tratamento canónico, dentro da famosa paródia do soprano do século XIX. Submersas pela desgraça, Cunegundes e a velha associam-se e encorajam-se num mesmo plano simbiótico de sobrevivência porque lá, onde o corpo proporciona prazer a quem o requisita e a dignidade se torna toxicamente vendável, em Lisboa, alternando na cama com o judeu Issacar e com o Inquisidor e Monsenhor (texto da novela de base) pode beneficiar-se em matéria de protecção e acúmulo de alguns bens e de alguns luxos. Veja-se o ambiente e o contexto descrito na ária 12. Glitter and Be Gay:
Cândido voltaireano
Cândido bernsteiniano
Capítulo VIII
Introdução da ária
Ela retomou assim o fio da sua história:
― Um capitão búlgaro entrou, viu-me toda cheia de sangue, e o soldado pareceu não dar por ele. O capitão irritou-se com a falta de respeito que aquele bruto lhe testemunhava e matou-o sobre o meu corpo. Em seguida fez-me tratar e levou-me como prisioneira de guerra para o seu quartel. Passei a lavar-lhe as poucas camisas que possuía e fazia-lhe a comida. É preciso confessar-vos que ele me achava muito linda, e não vos negarei que ele era bem feito e tinha a pele branca e macia. Possuía, porém, pouco espírito, pouca filosofia. Via-se bem que não tinha sido educado pelo Doutor Pangloss. Ao fim de três meses, tendo perdido todo o dinheiro e tendo-se aborrecido de mim, vendeu-me a um judeu chamado D. Issacar, que traficava em Holanda e Portugal e gostava muito de mulheres. Esse judeu apaixonou-se por mim, mas não conseguiu vencer a minha resistência. Defendi-me melhor dele que do soldado búlgaro. Uma mulher de honra pode ser violada uma vez, mas a sua virtude fortalece-se.

«O judeu, para me conquistar, trouxe-me para esta casa de campo em que estamos agora. Julgara até então que nada havia no mundo que fosse tão belo como o castelo de Thunder-ten-tronckh, mas estava enganada, tenho de o reconhecer.
The Jew enjoys her on Tuesdays, Thursdays and his Sabbath, the Cardinal Archbishop on Wednesdays, Fridays and his Sabbath. On Saturday night there is occasionally some dispute over the Sabbath as defined in the Judaic and Christian traditions. Sad at heart, the mysterious beauty sees herself compelled to glitter, forced to be gay.

12. Glitter and Be Gay
CUNEGONDE
Glitter and be gay,
That’s the part I play:
Here I am in Paris, France,
Forced to bend my soul
To a sordid role,
Victimized by bitter, bitter circumstance.
Alas for me! Had I remained
Beside my lady mother,
My virtue had remained unstained
Until my maiden hand was gained
By some Grand Duke or other.
Ah, ‘twas not to be;
Hash necessity

O inquisidor-mor, viu-me um dia na missa. Mirou-me muito e mandou-me dizer que me queria falar acerca de um assunto particular. Fui levada ao seu palácio, falei-lhe do meu nascimento e ele fez-me ver quanto era desonroso para mim pertencer a um israelita. Propuseram da sua parte a D. Issacar ceder-me a Monsenhor. Mas D. Issacar, que é o banqueiro da corte, homem de fortuna, recusou a proposta. O inquisidor ameaçou-o com um auto de fé; e o meu judeu, intimidado, concluiu com ele um negócio em virtude do qual a casa e eu pertenceríamos, em comum, a ambos, dispondo o judeu das segundas, quartas e sábados, e o inquisidor dos restantes dos dias da semana.

«Há seis meses que esta convenção subsiste, não sem algumas discussões, porque muitas vezes é indeciso se a noite de Sábado para Domingo pertence à antiga lei ou à nova. Quanto a mim, até agora, tenho resistido a ambos, e creio que é essa a razão de ser ainda amada por eles.
«Enfim, para afastar o flagelo dos tremores de terra e intimidar D. Issacar, aprouve a Monsenhor, o Inquisidor, mandar celebrar um auto de fé. Tive a honra de ser convidada e deram-me um lugar esplêndido. Entre a missa e a execução, serviram refrescos às damas. Fiquei, na verdade, horrorizada quando vi queimar o dois judeus e o biscainho que tinha casado com a comadre, mas foi tal a minha surpresa, o meu horror e a minha perturbação quando vi, dentro de um sambenito e com uma mitra na cabeça, uma figura que se assemelhava à de Pangloss, que esfreguei os olhos, fixei o olhar e desmaiei quando o vi ser enforcado. Mal tinha recobrado os sentidos, quando vos vi completamente nu. Foi então o cúmulo do horror, da consternação, da dor, do desespero. Dir-vos-ei, sem mentir, que a vossa pele é ainda mais branca que a do capitão búlgaro e que tendes uma carnação ainda mais perfeita que a dele. Esta vista agravou os sentimentos que me dominavam, que me devoravam. Queria gritar, queria dizer: ‘Parai, bárbaros!’, mas faltou-me a voz. Além disso, os meus gritos teriam sido inúteis. Enquanto vos açoitavam, dizia comigo: ‘Como é possível que o amável Cândido e o sábio Pangloss se encontrem em Lisboa, um para receber um cento de açoites e o outro para ser enforcado, por ordem de Monsenhor, o inquisidor, de quem sou a bem-amada?
Brought me this gild cage.
Born to higher things,
Here I droop my wings,
Ah! Singing of a sorrow nothing can assuage.
And yet of course I rather like to revel,
ah, ah!
I have no strong objection to champagne,
ah, ah!
My wardrobe is expensive as the devil,
ah, ah!
Perhaps it is ignoble to complain...
Enough, enough
Of being basely tearful!
I’ll show my noble stuff
By being bright and cheerful!
AH ha ha ha ha! Ha!
Pearls and ruby rings...
Ah, how can worldly things
Take the place of honor lost?
Can they compensate,
For my fallen state,
Purchased as they were at such an awful coast?
Bracelets... Lavalieres...
Can they dry my tears?
Can they blind my eyes to shame?
Can the brightest brooch
Shield me from reproach?
Can the purest diamond purify my name?
And yet of course these trinkets are endearing,
ah, ah!
I’m oh, so glad my sapphire is a star,
ah, ah!
If I’m not pure, at least my jewels are!
Enough, enough!
I’ll take their diamond necklace And show my noble stuff By being gay and reckless!
AH ha ha ha ha! Ha!
Observe how bravely I conceal
The dreadful, dreadful shame I feel.
Ah ha ha ha ha! Ha!
I rather like a twenty-carat earring,
ah, ah!
If I’m not pure, at least my jewels are!
Enough, enough!
I’ll take their diamond necklace And show my noble stuff By being gay and reckless!
AH ha ha ha ha! Ha!
Observe how bravely I conceal
The dreadful, dreadful shame I feel.
AH ha ha ha ha! Ha!
De resto, só no fim da narrativa, já quando não possui quaisquer atractivos e se torna a figura desagradável e desconfortável do cansativo e típico queixume doméstico, é que finalmente se efectiva a reunião definitiva de amor com Cândido, fruto tardio, desprovido já da fulguração virginal existente na paixão originária.

Sem comentários: