quarta-feira, 5 de setembro de 2007

7. A ABERTURA DO «CÂNDIDO»: UMA PERSPECTIVA EKFRÁSICA

Ao tomar como ponto de partida a insustentabilidade de uma poesia e de uma música puras, tese para a qual arrola a dimensão eminentemente lírica, notável no trabalho da voz e ao nível do canto em geral, de alguns compositores, como Claudio Monteverdi, Gabriel Fauré e Claude Debussy, num livro fascinante, Les Arpèges Composés, ed. Klincksieck, Paris, 1997, Pierre Brunel adopta uma perspectiva de abordagem do poético-musical que vê na reciprocidade e na contaminação permanentemente reversível poesia / música a natureza essencial dos dois fenómenos. Por isso, a dado passo, confessa: «Pour moi e en moi, la musique et la littérature forment des arpèges composés. Je les ai toujours associées, et je les crois inséparables. Car comme pour la “poésie pure” qui fit florès au temps de l’abbé Bremond, la musique pure ocupe une position intenable.» Há, evidentemente, dentro de uma estratégia de nobilitação de um herói com quem o público mantenha um vínculo identificador, uma acentuada tonalidade lírica no «Cândido» bernsteiniano, associada à ligação intercortada deste com Cunegundes, mas essa tonalidade de modo nenhum aparece na novela de base, seja em menor, seja em equivalente intensidade. E não apenas há, entre um e outro textos, distanciamento a esse nível, como se detecta também outra ordem de desvios em relação ao texto de base: se neste, por exemplo, é através do relato panglossiano que Cândido fica a saber do desastre no castelo de Thunder-ten-tronckh e da morte da sua Cunegundes, distintamente, no texto bernsteiniano, Cândido é colocado lá, choroso entre as ruínas ainda fumegantes do ataque búlgaro, à procura do cadáver da sua amada. De resto, na novela de base, quando muito, a efusão lírica é pseudo-lírica e corresponde à dessacralização e carnavalização de lugares-comuns assertivos e sentimentais, e cada lamentação apaixonada, a cada frustrado reencontro ou desgostosa perda de Cândido, e apenas hiperbolizam um registo paródico, porque a ficção estandardiza e parodia a funcionalidade dos sentimentos, na medida em que lhes é contíguo o desfiguramento, o prosaico, a doença, outra ordem de sofrimentos perante a qual toda a efusão lírica perde a força, esvaziando-a de quaisquer outras implicações de tipo profundo. Há portanto, entre os elementos no plano da narrativa de base e os diálogos e didascálias do texto adaptado, discrepâncias tonais, oscilações entre o registo lírico e o paródico, distanciamentos. Isso mesmo se demonstra no quadro comparativo seguinte, sendo que da música, na sua plangente dramatização, quer dos lamentos de Cândido, por se ver expulso, quer da perda precoce e brutal de Cunegundes, resulta um reforço claro da dimensão lírica, do meu ponto de vista, conforme já expus, indetectável no texto de base:

Cândido voltaireano
Cândido bernsteiniano
Capítulos I, § 7, e II, § 1; Capítulo IV, § 8.
Introdução da ária
Um dia, Cunegundes, andando a passear junto do castelo, no pequeno bosque a que chamavam parque, viu entre os arbustos o Dr. Pangloss a dar uma lição de física experimental à criada de quarto de sua mãe, uma moreninha muito linda e muito dócil. Como a menina Cunegundes tinha muita inclinação para as ciências, observou, sem fazer barulho algum, as reiteradas experiências de que foi testemunha. Viu claramente a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e foi-se embora toda agitada, pensativa e cheia de desejo de ser sábia, pensando que ela bem podia ser a razão suficiente do jovem Cândido, como este podia ser a sua. Quando voltou para o castelo, encontrou Cândido e corou. Cândido corou também. Ela deu-lhe os bons-dias com uma voz entrecortada e Cândido falou-lhe sem saber o que dizia. No dia seguinte, depois do jantar, quando se levantavam da mesa, Cunegundes e Cândido encontraram-se atrás de um biombo. Cunegundes deixou cair o lenço, Cândido apanhou-o; ela segurou-lhe inocentemente a mão; o jovem beijou-lhe inocentemente a mão com uma vivacidade, uma sensibilidade, uma graça, muito particulares; as bocas encontraram-se, os olhos inflamaram-se, os joelhos tremeram, as mãos desatinaram. O Sr. Barão de Thunder-ten-tronckh passou ao pé do biombo e, vendo esta causa e este efeito, expulsou Cândido do castelo aos pontapés no rabo. Cunegundes desmaiou. Quando voltou a si, foi esbofeteada pela Sr.ª Baronesa e houve uma grande consternação no mais belo e agradável dos castelos. (Cândido, Cap. II, § 7).

Expulso do paraíso terrestre, Cândido caminhou durante muito tempo, sem saber para onde, chorando, erguendo os olhos ao céu, voltando-os muitas vezes para o mais belo dos castelos, que encerrava nos seus muros a mais bela das baronesazinhas. Dormiu, sem cear, no meio dos campos, entre dois regos. A neve tombava em grandes flocos. Cândido, transido de frio, arrastou-se no dia seguinte para a cidade vizinha de Waldberghoff-trarbk-dikdorff, sem dinheiro, morto de fome de cansaço. Parou tristemente à porta de uma taberna. (Cândido, Cap. II, § 1).

Cândido desmaiou ao ouvir isto. O amigo fê-lo voltar a si, dando-lhe a cheirar um pouco de vinagre que encontrou no estábulo. Cândido reabriu os olhos:
― Cunegundes morreu! Mas onde está o melhor dos mundos? De que doença morreu ela? Não seria de me ter visto expulsar a pontapé do lindo castelo do senhor seu pai?
― Não ― respondeu Pangloss ―, foi esventrada por soldados búlgaros, depois de ter sido violada tanto quando se pode sê-lo. Esmigalharam a cabeça ao Sr. Barão, que a queria defender, e cortaram a Sra. Baronesa em bocados. O meu pobre pupilo foi tratado exactamente como a irmã. Quando ao castelo, não ficou pedra sobre pedra, nem um prado, nem um carneiro, nem um pato, nem uma árvore, mas fomos bem vingados, porque os Árabes fizeram o mesmo numa baronia vizinha que pertencia a um senhor búlgaro. (Cândido, Cap. IV, § 8).
The Baron and his family are outraged. Candid is an illegitimate cousin, a social inferior. How dare he embrace the daughter of a Westphalian Baron? He is brutally expelled from Schloss Thunder-tem-Tronck and wanders alone – with only his optimism to cling to.

5. It Must Be So
(Candide’s Meditation)

CANDIDE
My world is dust now, And all I loved is dead.
Oh, let me trust now In what my master said:
“There is a sweetness in every woe.”
It must be so. It must be so.

The dawn will find me
Alone in some strange land.
But men are kindly;
They’ll give a helping hand.
So said my master, and he must know.
It must be so. It must be so.

Everyone is massacred: the Baron, Maximilian, Paquette, even Pangloss. The Baroness is cut to pieces. Cunegonde raped repeatedly before she is bayoneted to death. Among the ruins Candide searches for her corpse.

7. Candide’s Lament

CANDIDE
Cunegonde!

Cunegonde, is it true?
Is it you so still and cold, love?
Could our young joys, just begun,
Not outlast the dying sun?

When such brightness dies so soon
Can the heart find strength to bear it?
Shall I ever be consoled, love? No, I swear it
By the light of this lover’s moon.
Though I must see tomorrow’s dawn,
My heart is gone where you are gone.
Shall I ever be consoled, love? No, I swear it
By the light of this lover’s moon.
Good-bye, my love, my love, good-bye.
Cunegonde!

Fora de considerações relativamente ao registo lírico que aparece enfatizado no segundo «Cândido», há, por outro lado, a considerar o papel, dentro da totalidade do espectáculo, do texto estritamente musical e que alberga necessárias remissões concordes com o tom da narrativa de base e com o perfil das personagens e eventos narrados. Paralelamente a outras peças famosas que integram o reportório do mundo da música consagrada e cuja ubiquidade podemos bem testemunhar, interpretadas que são tanto em Tóquio como em Londres, em Nova Iorque como em Moscovo, sejam elas, essa peças, a abertura de «O Messias», de G. F. Händel, do «Barbeiro de Sevilha», ou do «Guilherme Tell», de Gioacchino Rossini, um dos trechos do «Cândido» que se mantém vivo, em perfeito estado de fulguração e candor, interpretado também obrigatoriamente em todo o mundo, é a Abertura. Por ‘abertura’ entenda-se aquela peça musical de entrada, fragmento orquestral introdutório de uma obra de grandes dimensões, como a ópera ou o oratório. Façamos um levantamento descritivo do que se pode escutar nessa Abertura, seccionemo-la, para assim podermos encontrar nos jogos melódico-rítmicos, nas alternâncias instrumentais, efeitos pertinentes de significado válidos para os dois Cândidos.
00:00 O «Cândido» bernsteiniano começa com fortíssimos acordes de metais e madeiras, anunciando uma atmosfera efectivamente grandiosa, mas que integra marcas paradoxais de outro dos tons dominantes na opereta e na novela ou conto filosófico de base (permita-se-nos a hesitação): a sátira (note-se nesse domínio o papel dos xilofones e dos sinos), funcionando esta justamente como pólo destrutivo próprio de elementos pomposos, caricaturáveis, grandiosos de uma dada realidade, ou não fosse típico satirizar precisamente a grandeza dos sistemas, das personalidades, dos poderes, cevados pelo hábito do abuso e por isso mesmo desajustados relativamente ao meio. O complexo ritmo torna-se patente desde o princípio como um dos elementos fundamentais da estética de composição em Bernstein. 00:09 Pode ouvir-se o primeiro tema da abertura pelos violinos e é possível notar-se o complexo esquema rítmico a que o compositor submeteu a exposição. 00:17 Uma ponte realizada pelos metais serve de traço de união entre os dois fragmentos. 00:21 Escuta-se de novo o primeiro tema, que é de imediato interrompido por um fragmento dançável. O acompanhamento, carregado de expressão a nível da percussão (bateria, timbales, sinos) cria um ambiente de dança próprio da música americana, com certos acentos de folclore europeu. A repetição deste dançável, levemente enriquecido na instrumentação, enche o ambiente de sonoridades de uma grande expressividade. O xilofone, com o seu cunho jocoso, e outros instrumentos sobressaem entre a orquestra. 00:39 O ambiente alegre manifesta-se claramente na exposição do segundo tema, carregado de sonoridades de circo e de grande espectáculo ao ar livre. 00:45 As madeiras salientam-se com os seus cómicos desenhos melódicos, que animam o dinâmico discurso e reforçam o mágico desenvolvimento temático da abertura. 00:51 Volta a ouvir-se o segundo tema, seguido do fragmento das cordas. As cordas retomam o motivo das madeiras e diminuem o som lentamente, para dar entrada ao fragmento seguinte. 01:04 Aqui escuta-se uma sequência baseada no tema anterior, na qual se nota o contraponto temático, que Bernstein desenvolve com mestria. 01:13 Agora é o flautim que é encarregado, juntamente com o clarinete, de traçar a ponte que introduzirá o terceiro tema desta abertura. 01:20 As cordas são as protagonistas da exposição do terceiro tema: uma jovial melodia de conteúdo amável e sedutor, em alternância com a toada de grandiosidade quase bélica do primeiro tema, a doçura de expectativas de felicidade que poderão ver-se retomadas melodicamente no dueto entre Cândido e Cunegundes. 01:33 Na repetição ouve-se o tema ligeiramente enriquecido na sua arquitectura harmónica. 01:44 Uma sequência baseada no terceiro tema serve de desenvolvimento melódico ao discurso empreendido pelas cordas. 02:02 Reaparece o tema anterior, desta vez interpretado uma oitava mais acima da da apresentação. Como nas intervenções anteriores, em cada exposição temática a orquestração está notavelmente enriquecida, dotando o tema de uma expressividade inusitada. 02:13 Como se se tratasse de uma reexposição, ouvem-se de novo os agitados acordes do princípio, que anunciam outra execução do primeiro tema. 02:18 O primeiro tema reaparece na sua forma original, sempre com o complicado ritmo que o fundamenta. 02:29 Um rufo de percussão e dos metais ergue uma ponte entre o primeiro tema e o fragmento seguinte. 02:35 Agora, o reaparecimento do segundo tema, que se ouve com uma intensidade reforçada pela instrumentação. 02:50 O motivo dos violinos dará lugar ao terceiro tema e, em seguida, servirá de contraponto à sua solene melodia. Na repetição, a instrumentação eleva mais uma vez a intensidade expressiva do material temático. 03:13 Uma ponte liga a reexposição com a coda, ou secção final de alguns andamentos ou composições, que encerrará a abertura. 03:20 A coda começa com uma apresentação temática, carregada de motivos extraídos dos temas principais, que Bernstein combina com perfeito domínio artístico. O oboé será o protagonista deste fragmento, que nos oferece uma nova melodia inspirada no ambiente geral, mas que, na realidade, não se ouvira até então, relacionados, conforme se poderá escutar ulteriormente, com a vida dissoluta de Cunegundes alternadamente sob as mãos lúbricas do cardeal arcebispo de Paris e de um judeu rico, Don Issacar. 03:40 Uma polirritmia, acentuada pela percussão e pela melodia principal dos metais, cria uma gradual aceleração do tempo, que conduz inexoravelmente ao final da abertura. 03:58 As percussões do princípio servem de desculpa para alongar um pouco mais o discurso, que apresenta uma vez mais material do primeiro tema, ligeiramente variado. 04:10 Bernstein escolheu o segundo tema para realizar uma rítmica e esplendorosa cadência, que representará o ponto final da abertura do «Cândido». Os metais e a percussão serão os protagonistas desta cadência, em que Bernstein nos convida a reconhecer os diferentes grupos instrumentais, que, com intensidades distintas, intervêm nos últimos compassos que encerram a obra e mostram o contraste tímbrico e expressivo de cada grupo em si.

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