quarta-feira, 5 de setembro de 2007

1. INTRODUÇÃO: O LITERÁRIO E O MUSICAL - UM DIÁLOGO INDECLINÁVEL

«A mulher do orador, tendo aparecido à janela
e apercebendo-se de que havia um homem que duvidava
que o papa fosse o Anticristo, despejou-lhe em cima um vaso cheio de imundícies.
Oh, Céus, a que excessos o zelo da religião leva as damas!»


Cândido, de Voltaire, Cap. III, § 11.


Excitado com as possibilidades abertas pelos estudos interartes, de acordo com as reflexões aduzidas por Claus Clüver (2001), a partir de um novo paradigma nos estudos comparatísticos, que passam a englobar um universo de elementos mais complexo e vasto e que levam em conta, não somente a perspectiva estreita da comparação no plano das obras literárias entre si, mas também do texto literário com outras obras de arte, não tive dúvidas quanto ao campo em que me movimentaria e ao corpus que desejaria recobrir, no âmbito de Literatura Comparada I. A música. A música precedida pela literatura, no tempo e no contexto de produção, mas também a música que, como parte integrante de uma estrutura mais vasta, gerará, e exigirá ela mesma, e a seu tempo, nova literatura. Sem hesitações, decidi-me a empreender um trabalho, que, colocando em diálogo, dentro do possível e praticável, três níveis artísticos – o literário, as artes de palco e a música –, tivesse como objectivo fundamental a conjugação e a articulação comparatísticas da opereta cómica «Cândido», de Leonard Bernstein, uma dentre várias actualizações artísticas posteriores, com a novela filosófica de base «Cândido», de Voltaire, beneficiando do facto de, contínuo consumidor de música clássica e classicizante, já haver tido um prolongado, embora cíclico, contacto com aquela. Era preciso, de igual modo, que o meu trabalho demonstrasse quais os novos pressupostos artísticos e técnicos, retóricos e discursivos, que se encontram num específico processo de transposição intertextual, tendo em conta a necessária tradução interssemiótica, e as estratégias concertadas em decurso na indústria de entretenimento da Broadway, assim como as implicações levantadas pelas expectativas de um ambiente e de um público nova-iorquinos, exigências de uma recepção formada e modelada segundo determinados gostos, apta a submeter-se a determinados cânones e a decanonizar automaticamente produtos mal sucedidos e, por isso mesmo, era preciso que me interrogasse sobre que cedências, que mecanismos reguladores estariam a montante desta adaptação, considerando o período histórico em causa, os anos cinquenta do século vinte.
Pensar em tal trabalho era levar em linha de conta, portanto, os factores e contextos envolventes, a jusante e a montante, daquelas duas produções e não deixar negligenciadas, como domínios indeclináveis nos estudos comparatísticos e no campo dos estudos interartes, algumas das conclusões-prescrições do relatório Bernheimer, quando dá conta dos novos pressupostos que os programas de pós-graduação deverão albergar: «Os fenómenos literários já não são o foco exclusivo da nossa disciplina. Pelo contrário, os textos literários são agora abordados como uma prática discursiva entre muitas outras num campo complexo, movente e muitas vezes contraditório da produção cultural.» Por outro lado, incumbia-me ter suficiente consciência dos processos descritivos que repercutem a reciprocidade das relações entretecidas entre a literatura e a música, ainda que em esquemas, como o «esquema [de Steven Paul Scher (1982)] que (...) não consegue integrar conexões mais complexas do que (....) relações binárias», embora Clüver reconheça que ««Todas as categorias das relações músico-literárias no esquema de Scher, bem como os seus equivalentes nas inter-relações entre as outras artes, são perfeitamente acessíveis a empreendimentos interpretativos. Ilustrações e musicalizações de textos verbais e verbalização de pinturas, danças ou composições musicais, enquanto abordadas como objectos de interpretação, podem ser por sua vez lidas como interpretações, e portanto consideradas portas de entrada para se interpretar os textos a que elas se referem.» Em suma, incumbia-me operar a partir da consciência da obra de arte como texto que deve ser lido e a concepção do texto como em estado de permanente reescrita, no lugar de um texto estável, uma vez que: «Com a ascensão da semiótica, os estudiosos têm-se acostumado cada vez mais a tratar obras de arte como estruturas (usualmente complexas) de signos e a referir-se a esses objectos como «textos», qualquer que seja o sistema sígnico envolvido. Dessa forma, uma dança, um soneto, uma gravura, uma catedral, um filme e uma ópera são todos «textos» a serem «lidos». Assim também uma cédula, um selo postal, um programa de TV e uma procissão religiosa.», Claus Clüver (2001).

2. DA ERRÂNCIA DOS OBJECTOS AO ALEATÓRIO: O ENCONTRO COM A OPERETA BERNSTEINIANA

Produto de uma equipa de criativos ligada à Broadway, durante os anos cinquenta do século vinte nova-iorquino e em que o reconhecido maestro e compositor teve substancial preponderância, escutei-a ao longo de dezasseis anos de um modo cíclico porque costumava regressar a ela, ao chegar o mês de Setembro, num ritual muito particular, onde uma mistura de saudade e pertença me exigiam retomasse aquelas vozes, aquelas personagens, aquele humor e os tornasse meus, e os fizesse eu: funcionava para mim como um enquadramento temático adequadíssimo à minha situação precária de professor contratado. Tal interacção estética, musical e ritualista começara nos primeiros anos da década de noventa, num momento em que circunstâncias especiais proporcionaram que uma última edição revista de 1989, interpretada pelo London Shymphony Chorus e pela London Shymphony Orchestra, numa gravação de 1991, da Deutsche Grammphon, me viesse literalmente parar às mãos, oferecido por um vizinho, após alguns anos de, presumo, parda audição, a uma amiga íntima que, por sua vez, sabendo-me o melómano apaixonado que de facto sou, mo ofereceu a mim.

Iniciei, a partir de então, um descomprometido processo de escuta e estudo desta opereta, desenvolvendo particular entusiasmo por ela ao sentir-lhe as vibrações satíricas, a ironia com que, também do ponto de vista musical, estava revestida, sobretudo lá, onde a sátira mordaz dos textos adaptados e vertidos na língua inglesa ‘da Big Aple’ melhor se fundia com a construção musical para descrever as peripécias burlescas (a abundância da crueza humana, a míngua de actos de compaixão) das personagens voltaireanas e com elas me sentir irmanado, tal como elas «bípede sem penas». Desde o primeiro momento, fiquei indelevelmente marcado por esse encontro, à superfície fortuito, mas que continha certamente um fundo de pouca ou nenhuma casualidade, porque a perda do paraíso, seja ele qual for, e a errância, atravessando toda a sorte de provações e sofrimentos que uma imaginação humana pode conceber e catalogar, à procura incansável do amor, e, portanto, de parte da bem-aventurança possível neste mundo, constituem, conforme fui experimentando pessoalmente, condição essencial congénita ao ser humano. São-no em Cândido, que é uma representação, um texto, e essa condição nele representada, por ele espelhada, apesar de todas as decadências e degradações, é pouco passível de caricatura. Do meu ponto de vista, se há limites numa apropriação autobiografista do impacto que uma obra tem sobre um indivíduo em particular, não pode haver indiferença relativamente às implicações autorais sobre seja que obra for e é por isso que, em Voltaire, para além do detectável escopo ideológico de uma crítica que varre a acção maligna e danosa de muitos dos poderes no seu tempo, é impossível não existir, no cerne do estatuto autoral, uma clara partilha vestigial da natureza verdadeiramente sofredora, brilhante e imaculada, do seu protagonista: tal como o seu Cândido, Voltaire pôde sofrer as dolorosas barreiras impostas ao seu primeiro amor. Quando, não já Voltaire, mas ainda François, parte em missão diplomática com o embaixador, o marquês de Châteauneut, para Haia, encontra, logo que lá chega, uma moça: Olympe Runoyer, a Pimpette, com quem teve encontros amorosos e com quem queria coabitar em França. François escrevia cartas apaixonadas, dizendo: "não há dúvida de que irei amá-la para sempre." O caso foi descoberto. Mandam-no de volta para a casa de seu pai. Entre todas as penas e todas as crueldades, eis que se confronta com a contrariedade de ser contrariado, passe o pleonasmo, justamente no ponto em que será impossível um maior acordo com a vida e com o melhor dos mundos, na frescura da vida. De igual modo, como Voltaire, que se vê reflectido nos seus títeres e com eles dialoga impiedosa ou complacentemente, habituei-me a perder-me, a rever-me e a reencontrar-me, também eu, naquele Cândido de pendor mais lírico no espectáculo bernsteiniano, crente a espaços, entregue e confiado, nos simplistas ensinamentos do Dr. Pangloss, levados ad absurdum. Não era somente Cândido que acreditava na indeclinável bondade do ser humano. Porque eu escutava e me impregnava de toda aquela música, Cândido jamais continuaria só: ambos poderíamos pensar e cantar concordes que até do mais completo mal se pode extrair alguma espécie de bem. Ouvindo a opereta, confrontado com o mal, com os seus desgostos e com as suas perdas, desenvolveu-se, entre nós, verdadeira irmandade experiencial. Este mundo só se converteria, efectivamente, no melhor dos mundos possíveis, se o homem não interferisse, se nada de maligno emergisse dele, o que é quase impossível.

3. O ENCONTRO COM A NOVELA FILOSÓFICA VOLTAIREANA

O meu contacto propriamente com uma tradução do texto voltaireano haveria de dar-se somente em Maio do ano de 2002 e teve também os mesmos contornos já descritos para a opereta bernsteiniana: não foi uma compra, após a situação feliz de descobrir, num qualquer escaparate das livrarias tantas vezes por mim percorridas, um exemplar de um texto com quem estava já tão familiarizado, embora num universo sígnico diverso. Foi igualmente uma transmissão, uma mudança de mãos, no momento em que relações de amizade com um querido maestro conterrâneo, José de Castro, que toda a minha vida conhecera e admirara, se estreitaram e lhe falei da minha experiência do «Cândido» bernsteiniano, enquanto fonte de sentidos com os quais se entretecia a minha vida: foi ele quem, de imediato, sem anúncio nem antecipação, me surpreendeu com um já bem amarelecido volume das edições Europa-América, com data de Agosto de 1973, numa tradução de Maria Isabel Gonçalves Tomás, o qual me ofereceu. Pouquíssimo tempo depois, o processo de doença e morte do meu amigo maestro, que acompanhei e a quem auxiliei bem de perto, além de todas as circunstâncias de vida igualmente candidianas por que passei nesse período foram para mim renovada expulsão do castelo do Sr. Barão de Thunder-ten-tronckh, na Vestefália de estar vivo, ser compreendido e ter amigos. Parece que a vida raramente se compadece dos que, somente para sobreviver, ruminam inocente e deliciadamente a erva alta da paz, espraiados na colina, como plácidos bovinos no meio do pasto, inscientes de que haja esse trânsito, sabe-se mal para onde e para que coisa, chamado morte.

4. NOTAS PARA UM LEVANTAMENTO CONTEXTUAL DO «CÂNDIDO» VOLTAIREANO: ESBOÇO DE UMA SÍNTESE

Da leitura que imediatamente efectuei resultou uma mais alargada consciência das múltiplas implicações, não apenas filosóficas, do texto de partida. Ele termina por ostentar conclusivamente o princípio filosófico de rejeição da filosofia, sobretudo uma filosofia tagarela e irrealista, obstáculo a uma apreensão natural e empírica de componentes essenciais, porque saudáveis, da existência humana. Talvez esteja por cartografar devidamente o impacto de certos eventos naturais nas orientações filosóficas de fundo ao longo dos últimos milénios, mas o que é sabido é que Voltaire, uma das mentes mais marcadas pelo grande terramoto de Lisboa, e após reagir com o seu polémico poema, reverte a sua atenção da metafísica para os metafísicos. É feliz Graham Robb quando, in TLS, "Surviving the best of all possible worlds", de 7/18/97, e a propósito de uma adaptação por Murray Gold do «Cândido» voltaireano ao teatro, diz resumidamente o seguinte (obviamente os sublinhado pertencem-nos):

«The necessary chain of cause and effect is this. On All Saints' Day, 1755, while Voltaire tends his garden at his Swiss retreat, Lisbon is destroyed by an earthquake; 30,000 people die for no apparent reason. Voltaire publishes a poem on the disaster, asking, "Why do we suffer under an equitable Lord?" The poem presents a hypochondriac's view of the universe and raises a storm of protest. Voltaire is accused of questioning the notion of divine benevolence. Turning his attention now from metaphysics to metaphysicians, he chooses the perfect subject for a short story: a breakneck tour of the world incorporating almost every form of cruelty and suffering - lively, varied and yet, as Candide's servant observes, "curiously repetitive". Candide ou l'optimisme appears in 1759 and is eventually recognized as one of Voltaire's masterpieces.»

O terramoto de Lisboa tornou-se efectivamente um dado emblemático, relevante para o modo de ver o mundo pelo homem europeu daquele século. Foi um facto marcante para o tempo. Isso mesmo o reconhece Susan Neiman, na sua obra, Evil in the Modern Thought, considerando precisamente ter sido esse terramoto uma revolução coperniciana no modo de perceber modo funcionava o mal no mundo, segundo o pensamento do Iluminismo. Uma das sinopses da obra referida sintetiza-o inteligente e pertinentemente. Colocado ou não em termos teológicos, o mal põe um problema acerca da inteligibilidade do mundo. Ele confronta a filosofia com questões fundamentais: Haverá sentido num mundo em que os inocentes sofrem? Poderá a crença num poder divino ou no progresso humano sobreviver a uma catalogação do mal? Será o mal um mal profundo ou um mal banal? Neiman argumenta que estas questões conduzem a filosofia moderna. Os filósofos tradicionais, de Leibniz até Hegel, procuraram, por vezes toscamente, defender o Criador de um mundo que contém o mal. Inevitavelmente, os seus esforços, combinados com os de figuras mais literárias como Pope, Voltaire, e o Marquês de Sade, erodiram a fé na benevolência e providência, assim como no poder e relevância de Deus, até que, por fim, Nietzsche declarou que Ele havia sido assassinado. Aqueles também albergaram a distinção entre o mal natural e o mal moral, distinção que nós hoje tomamos por certa. Neiman passa depois à consideração da resposta da filosofia ao Holocausto como o mal moral final, concluindo que duas estâncias básicas correm através do pensamento moderno. Uma, de Rousseau a Arendt, insiste que a moral nos exige tornar o mal inteligível. A outra, de Voltaire a Adorno, insiste que a moral nos exige o contrário.

Do ponto de vista de Neiman, o mal tem algo que o homem leva para si mesmo e a intervenção de Deus não pode ser vista como punição, mas como algo que funciona dentro da natureza e segundo as suas leis. Pelo contrário, o mal moral que subjaz a qualquer crime cometido ou que se deseja cometer já está sob o controlo do homem e nada tem a ver com Deus. Deus nada tem a ver com o que vai mal no mundo porque se trata do resultado das leis naturais, e não de um castigo arbitrário. O outro mal, denunciado, exposto, quer na literatura quer, como defende a teologia, a exegese e a antropologia modernas, no próprio Antigo Testamento, é o mal que o homem faz a si mesmo. Não há combate a todas as formas de mal, ocultando-as, mas descrevendo-as, expondo-as, para que também se dobrem, sejam detestadas e desapareçam na processualidade histórica.

Historicamente, o terramoto de Lisboa corresponde a um momento da transição de um súbito domínio católico para um súbito domínio protestante, e Lisboa, que era o principal centro de comercial da Europa, embora os ingleses tivessem uma grande preponderância lá, é ultrapassada, sendo que todo o comércio, a partir do terramoto, ultrapassando Lisboa, começa a fazer-se por outros centros. A intriga pode resumir-se em breves pinceladas e é possível acompanhar ainda o mesmo Graham Robb, in TLS, "Surviving the best of all possible worlds", de 7/18/97:

«The Lisbon earthquake was a good thing after all. This would be the view of Dr Pangloss, resident philosopher in the Westphalian castle of Baron Thunder-ten-Tronckh. The Baron's illegitimate nephew, Candide, learns from Pangloss that, in this, the best of all possible worlds, all is for the best, while the Baron's beautiful daughter Cunegonde draws similarly cheerful conclusions from the lessons in "experimental physics" which Pangloss gives to a maid in the shrubbery. When the Baron discovers Candide's infatuation with Cunegonde, the hero is expelled from his "earthly paradise". Conscripted, beaten, flayed, starved, arrested by the Inquisition, covered in excrement, robbed and forced to commit murder, Candide comes to suspect that all is not for the best, though the Panglossian precepts still seem convincing at the end of a good meal. Meanwhile, the lovely Cunegonde has been raped, mutilated and sold into slavery. Pangloss is hanged and dissected, but survives to become a galley-slave. After several years of torture and humiliation, the characters are reunited. Candide bravely marries his once adored Cunegonde, now "a sight to make one envy the blind" (as Murray Gold puts it) and they all live together on a small pistachio and candied-fruit farm near Constantinople. Suffering gives way to boredom; boredom gives way to philosophical debate. A local dervish is consulted. He advises them to give up futile speculation and to mind their own business. Wisely, they devote themselves to farming and become reasonably happy.»


O sofrimento dá lugar ao aborrecimento. O aborrecimento dá lugar ao debate filosófico. Por ironia, o último capítulo da novela apresenta o trabalho como a grande solução para o grande problema do tédio e do vício, venenos da vida, piores ainda que as desgraças por que Cândido e o seu grupo, agora reunido em Constantinopla, tinha passado. Mas o processo de descoberta do óbvio, da velha felicidade suficiente através da mediania, um projecto, afinal, de felicidade resistente à acção danosa da filosofia, não poderia ser automático. É justamente a velha que, fazendo um resumo, apresenta primeiramente o problema:

Cândido, Martin e Pangloss discutiam frequentemente sobre moral e metafísica. Viam muitas vezes passar sob as janelas da casa barcos carregados de efêndis, paxás e cádis que eram exilados para Lemnos, Mitilene e Erzerum; outros cádis, outros paxás e efêndis tomavam o lugar deles e eram, por seu turno, expulsos. Podiam também contemplar as cabeças bem empalhadas que iam apresentar à Sublime Porta.

Estes espectáculos faziam redobrar as discussões; quando não se discutia, o aborrecimento era tão grande que a velha ousou dizer-lhes um dia:
― Gostava de saber se será pior ser violada cem vezes por piratas negros, ter uma nádega cortada, sofrer as chibatadas dos Búlgaros, ser açoitado e enforcado num auto-de-fé e depois dissecado, remar nas galés, experimentar enfim todas as misérias por que temos passado ou estar aqui sem fazer nada?
― Eis um grande problema ― disse Cândido.

(Cândido, Cap. XXX, §§ 3,4, 5 e 6).

Mas para se chegar a uma conclusão que satisfizesse todas as deambulações do Cândido que há em cada qual, que pacificasse as ânsias e as desgraças de um caminho tortuoso, que eliminasse o peso opressor das execuções, dos castigos, dos exílios, esgotados todos os debates e argumentações, esgotadas todas as aventuras e inquietações, uma vez que se encontram em Constantinopla, consultam um derviche, mas, desde logo, no diálogo com ele, percebe-se que a sua sapiência apenas carreia pontos de vista prudenciais, certamente interessantes no que respeita ao sentido de autopreservação, mas passivos, alheados e pacíficos, no que o pacífico tem de conivente com o mal, coisa precisamente do interesse dos poderes exercidos fora do Iluminismo, pois que dispensam bem que se pense e, portanto, que se questione a ordem imutável das coisas, que é divina, contanto beneficie sempre os mesmos, a nobreza e o clero, muito embora o Dr. Pangloss, à vista do tratamento dado aos poderosos ao longo da história, conclua que «As grandezas ― disse Pangloss ― são muito perigosas, na opinião de todos o filósofos.», demonstrando-o em seguida com inúmeros exemplos. É certo que preservar a vida, mediante o silêncio, pode ser um bom programa, mas é insustentável dentro de uma óptica de participação democrática (os salões, as lojas maçónicas, os cafés), tal como a concebia o Iluminismo, a quem interessava a difusão das ideias, o activismo político, a troca de panfletos e a elaboração de estratégias de combate na luta contra a superstição e o obscurantismo. O último capítulo, enquanto resolução dos problemas levantados pelo elencar das crueldades em acção no mundo e sobre as personagens, privilegiando a mesma ironia, a mesma mordacidade, deixa a entender a impossibilidade de continuidade indefinida do mesmo mal, porque a entropia inerente às leis da natureza, a infecundidade e o sem propósito do mal podem anulá-lo, desde que se cultive o próprio jardim. Os questionamentos essenciais que se eternizam também conduzem ao pessimismo amargo de Martin, se não houver concomitante cooperação com a natureza e esta cooperação serve igualmente de ponto de equilíbrio para o optimista e para o pessimista. Só na natureza se conciliam aquelas polaridades.

Note-se o humor acabado, que a tradução não parece enfraquecer, de que se reveste este diálogo, tratando-se de uma pose, a do derviche, hierática e absoluta, onde a filosofia não serve para questionar, mas para anestesiar do mal, do porquê de tudo, do o que fazer:

Havia na vizinhança um derviche muito famoso que passava por ser o melhor filósofo da Turquia. Foram consultá-lo. Pangloss tomou a palavra e disse-lhe:

― Mestre, vim pedir-vos que nos digais porque foi criado um animal tão estranho como o homem.
― Porque te importas com isso ― respondeu-lhe o derviche ―, se é coisa que não te diz respeito?
― Mas, reverendo padre ― insistiu Cândido ―, é horrível o mal que há no mundo.
― Que importa que haja mal ou bem? ― disse o derviche. ― Quando Sua Alteza manda um navio ao Egipto, trata, porventura, de saber se os ratos que vão a bordo estão à sua vontade ou não?
― Que devemos então fazer? ― disse Pangloss.
― Calares-te ― opinou o derviche.
― Seria para mim muito mais lisonjeiro ― disse Pangloss ― discorrer um pouco convosco sobre causas e efeitos, o melhor dos mundos possíveis, a origem do mal, a natureza da alma e a harmonia preestabelecida.

O derviche, a estas palavras, fechou-lhes a porta na cara.

(Cândido, Cap. XXX, do § 12 ao 20).

Não é, ao contrário do que faz sugerir a recensão de Robb, que nesse aspecto é simplificadora, a teoria do derviche consultado aquele que concretiza o melhor caminho ao grupo de Cândido, caminho aliás que aponta para a grande indiferença divina relativamente aos ratos no navio que Sua Alteza envia ao Egipto, perspectiva teísta com que Voltaire basicamente se identificava, mas a prática de um homem comum com quem se deparam, regressados daquele estranho colóquio.

Embora igualmente desinteressado de nomes e posições de poder, é ele que parece possuir o bem senso para uma vida satisfatória, regrada, baseada no trabalho e na cooperação familiar, dela extraindo todos os requisitos do bem-estar sempre assente no trabalho. No fim, não foi deslocado de todas estas conclusões simples que Cândido, enquanto ia «reflectindo profundamente» sobre o discurso do turco, a certo passo diz a Pangloss e a Martin que aquele bom velho parecia ter uma sorte bem preferível à daqueles seis monarcas com quem haviam tido a honra de cear:

Esta catástrofe causou durante algumas horas grande alarido por toda a parte. Pangloss, Cândido e Martin, voltando à sua pequena propriedade, encontraram um bom velho que tomava o fresco à porta de sua casa, à sombra das laranjeiras.

Pangloss, que era tão curioso como tagarela, perguntou-lhe como se chamava o mufti que acabara de ser estrangulado.
― Não sei ― respondeu o bom homem ―, nem nunca soube o nome de qualquer mufti ou vizir. Ignoro em absoluto o caso de que falais e penso que, em geral, os que se imiscuem nos assuntos acabam miseravelmente, e bem o merecem. Mas nunca me informo do que se faz em Constantinopla. Contento-me em mandar lá vender os frutos da horta que cultivo.

Ditas estas palavras, mandou entrar os estrangeiros em sua casa; as duas filhas e os dois filhos serviram-lhe variados sorvetes, que eles próprios preparavam com sumo de cidra, laranja, limão doce e azedo, ananás, amendoim e café de Moca, sem mistura de mau café da Batávia e das ilhas. Por fim, as duas filhas deste bom muçulmano perfumaram as barbas de Cândido, Pangloss e Martin.
― Deveis ter ― disse Cândido ao turco ― uma propriedade vasta e magnífica.
― Só possuo vinte jeiras e trabalho-as com os meus filhos. O trabalho liberta-nos de três grandes males: a pobreza, o aborrecimento e o vício.
(Cândido, Cap. XXX, do § 22 ao 27).

5. DUAS OBRAS. DOIS ENCONTROS. O SUPORTE FÍSICO DO «CÂNDIDO» BERNSTEINIANO

Livro e suporte musical, dois encontros, portanto, regidos pelo signo do aleatório, do aparentemente fortuito, a partir dos quais vida e objectos, na sua dimensão física, conteudística e estética, se fundem harmoniosamente, partilhando, ela com eles e eles com ela, todos os paradoxos e todas as consubstanciais tonalidades de enquadramento num tempo e num contexto específicos: não há recepção de uma obra literária ou outra fora da vida concreta e uma e outra, recepção e vida, entretecem necessariamente um diálogo com implicações e alcances imprevisíveis. Por isso mesmo, aqueles foram para mim, quer num caso, quer noutro, encontros inesperados e marcantes.

Tomando em consideração o suporte físico da opereta que me foi oferecida, visto a esta luz, à luz do trabalho que agora se efectiva, mesmo ele parecia também, desde logo, conter em si mesmo, subliminal, uma remissão para o primeiro nível da mensagem contígua ao conto e ao espectáculo. Basta antecipar o que foi o trânsito (a precisa circulação errante, do artefacto, tendo em conta a sua dimensão física e palpável, antes mesmo do ponto de venda, tendo passado pelas mãos do circuito de pós-produção, depois as mãos que catalogam, que pegam e tocam, mas não compram, mais tarde as que tocam e adquirem, mais tarde ainda outras que recebem como dádiva e, finalmente, provisoriamente definitivas, as minhas, que manuseiam, observam possuem) para sentir haver um claro vínculo com o conteúdo mesmo deste «Cândido». E as minhas mãos começaram por tocar – contendo uma segunda caixa quadriangular plástica articulada, onde dois CDs se integram, com um livrinho de apresentação da obra, dos artistas e dos textos em versão trilingue (alemão, inglês e francês) – uma primeira pequena caixa em cartão fino, acetinado, de cor verde e encarnada, num recorte em escada, em cujo verso dispõe-se, em lista, a ficha técnica e em cuja frente, além de uma ficha técnica mais geral, destacando os nomes mais importantes, se representam vários ícones dispostos como se sobre plataformas ou degraus, remetendo para alguns dos elementos-chave da narrativa de base: em posição mais inferior que central, pode ver-se, em destaque, o eldoradesco carneiro de ouro, assente nas quatro patas sobre um dos paralelogramos de um sólido paralelepípedo amarelo, está em equilíbrio instável, uma vez que o único ponto de apoio é a escassa linha de uma das suas arestas; por baixo do carneiro, destacado e sobreposto na base do sólido já referido, um outro sólido de cor branca onde ressalta uma figura pela metade, prateada, quase imperceptível, de uma mulher sentada, de costas, lendo, na qual se percebe a riqueza da cadeira e das vestes setecentistas; por trás dele, do carneiro eldoradesco, um coqueiro prateado: coqueiro e carneiro parecem sublinhar toda a simbologia do Novo Mundo e das suas promessas; em posição inferior, e mais à esquerda, vê-se aquilo que parece ser um soldadinho de chumbo, de cor prateada, com a espada, as meias, o casaco e a peruca setecentistas; em posição cimeira, mais à direita, uma outra figura humana desarmada, igualmente em vestes setecentistas, onde predomina o amarelo-dourado e o encarnado e que poderá representar Cândido: está numa expressão de amplitude, declamatória, sugerindo quer uma abertura de espírito ingénua ao mundo, quer um estado de precaridade, precaridade essa que é dada sobretudo pelo material plástico vulgar de que aparenta ser feito; todas as figuras surgem infantilmente miniaturadas, permitindo antecipar, ler aí, precisamente o burlesco e o cómico e há uma seta amarela às pintas negras curviforme que, ladeando-as, às figuras, pela direita, e começando a partir do canto superior direito desce e aponta para baixo, sugerindo movimento e sublinhando o que será um meteórico percurso descendente. O artefacto estava nas minhas mãos, único, meu, intimo. Era preciso agora desbravar a música.
Todo o processo de encontro e de descoberta destas obras teve ressonâncias e implicações várias e de vária ordem com o que na obra voltaireana há de verdadeiramente nuclear do ponto de vista tonal e que é justamente esse carácter errante e deambulatório de uma personagem, Cândido, que, por uma razão miserável e ridícula, é expulso do paraíso – e o paraíso era o próprio lar onde nascera – iniciando uma errância pela qual vai confrontar, infirmando-a, toda uma filosofia de base que houvera bebido, como um colostro inicial: de que ao determinar-se a criar o universo, Deus seleccionou o melhor dos mundos possíveis e que se a ciência divina oferecia ao Criador um imenso leque de possibilidades de escolha, a sua bondade infinita levou-o a optar pelo melhor. Nem tudo nesta filosofia poderá ser ingenuidade. Pode ser também fulguração, loucura, pureza imaculada. O certo é que na etimologia da palavra Cândido encontramos outras acepções além da que, hoje, prevalece, a ingenuidade. Bastará uma consulta mínima de um bom dicionário de latim, para podermos surpreender conceitos intocáveis, ainda, do ponto de vista semântico, carregados ainda de positividade, de brilho, até de força poética incandescente, pode dizer-se. Verbos, adjectivos, advérbios, a riqueza morfológica em torno deste conceito pode impressionar os espíritos mais impreparados. Candeo, es, ere, ui, v. int. 1. Ser duma brancura brilhante, brilhar, brilhar como a neve. 2. Aquecer até se tornar branco, estar em brasa, queimar. 3. Ser da cor do fogo (a púrpura). 4. Estar irritado, abrasado em cólera. 1. Candidatus, a, um, (candidus), adj. vestido de branco // candidatus, i. m. 1. Candidato, pretendente a um cargo público. 2. (Sent. Geral). Pretendente, aspirante a // eloquentiae candidatus, Quint., aspirante à eloquência, candidato a orador // candidata, ae, f. Candidata (ao sacerdócio) Obs. O candidato vestia a toga branca. 2. candidatus, us (candidus), m. Candidatura. Candide (candidus), adv. 1. De cor branca. 2. Com candura, de boa fé, com simplicidade, simplesmente. Candĭdus, a, um, (candeo), adj. 1. Branco brilhante, branco de neve. 2. Vestido de branco // candida turba, Tib., multidão vestida de branco. 3. Brilhante, resplandecente, belo, formoso // candida Dido, V., a radiosa Dido. 4. Feliz, favorável. 5. Franco, leal, sincero. 6. Claro, nítido, límpido, puro (voz, estilo). Candor, oris (candeo) m. 1. Cor branca viva // equi condore nivali, V., cavalos brancos como a neve. 2. Brilho (do céu, do Sol). 3. Calor ardente. 4. Beleza (das pessoas). 5. Clareza, limpidez (do estilo). 6. Sinceridade, boa fé, franqueza, inocência, candura.

6. DO «CÂNDIDO» INICIAL AOS DEMAIS «CÂNDIDOS»: DE 1759 ATÉ OUTUBRO DE 1956, EM BOSTON

Pensar no «Cândido» deverá significar não esquecer que a fortuna do texto de base se manifestou ao longo do tempo, tendo havido variadas adaptações de que convém tenhamos noção. É consultável, mediante a Internet, um quadro cronológico comentado de adaptações artísticas conhecidas do «Cândido», do ano de 1826 ao de 2002, incluindo o ano de estreia do «Cândido» bernsteiniano, erroneamente apresentado como de 1957, quando na verdade estreou em Outubro de 1956 e se prolongou somente até Fevereiro do ano seguinte, portanto com sucesso relativamente fraco, tendo por padrão e exemplo outros espectáculos. Apesar de algumas, mínimas, inexactidões neste quadro, como a referida, o que se pode ver é o modo como a novela voltaireana foi sendo retomada, transformada e adaptada, sobretudo no plano do texto dramático e, dentro deste, necessariamente ao nível da comédia.

Kommentierte chronologische Übersicht zu Bühnen-Bearbeitungen:

1826
Doigny Du Ponceau: Candide à Venise, comédie en 1 acte, suivie d'un divertissement, in: Oeuvres... Théâtre... Tome 2nd, Paris 1826.
1923
Clément Vautel (pseud. de Clément-Henri Vaulet) et Léo Marchès: Candide, pièce en 5 actes et 9 tableaux, d'après le roman de Voltaire. Avec musique de scène de Félix Fourdrain... [Paris, Odéon, 23 novembre 1923. - Candide au Théâtre de l'Odéon, par Robert de Beauplan.]. - Paris : impr. de l'Illustration, 1924. 30 p., fig. (=La Petite Illustration, théâtre, nouvelle série, no 110, 12 janvier 1924).
1924
Tristan Bernard & Lucien Bernard: Les Deux Vielliards, play. 1924 Copyright-Anmeldung
1932
Antheil, George (1900-1959): Candide. Merry-go-round. Vocal score Merry-go-round from Candide. 1932. 1 ms. vocal score ([5] leaves); 29 cm. holograph signed (photocopy, negative). For solo voice, unison chorus and piano. From unfinished musical play based on Voltaire, with text by Antheil and Brewster Morgan. Cf. The life and music of George Antheil, 1900-1959 / by Linda Whitesitt. Ann Arbor, Michigan : UPI Research Press, c1983 (Item 97, 217). Accompanied by sketches for other sections of Candide ([2] leaves, photocopy, negative + [4] p., holograph, in ink).
1951
Paillard, Auguste: Pinapoisse ou Candide au XXe siecle. Paris, Ségur (Impr. de la Fourche) 1951, 256 p. (Collection A mourir de rire)
1953
Brulez, R.F.M.J.G.: De Beste der werelden. Zeer vrij naar Voltaire's "Candide ou l'optimisme". 1953. Nachgewiesen in der British Library
1957 (na verdade 1956)
Hellman, Lillian: Candide: a comic opera based on Voltaire's satire / book by Lillian Hellman. Score by Leonard Bernstein. Lyrics by Richard Wilbur ... - New York: Random House,1957.-143S.:ill.Vgl.: Wilson, Robert A. Richard Wilbur and Candide, in: Papers of the Bibliographical Society of America 89(1) (1995) S. 73-83; Murphy, Patricia. Voltaire's Candide and Bernstein's Candide: Teaching through Comparison, in: Approaches to Teaching Voltaire's Candide, hrsg. von Waldinger, Renee, New York 1987, S. 108-112.

7. A ABERTURA DO «CÂNDIDO»: UMA PERSPECTIVA EKFRÁSICA

Ao tomar como ponto de partida a insustentabilidade de uma poesia e de uma música puras, tese para a qual arrola a dimensão eminentemente lírica, notável no trabalho da voz e ao nível do canto em geral, de alguns compositores, como Claudio Monteverdi, Gabriel Fauré e Claude Debussy, num livro fascinante, Les Arpèges Composés, ed. Klincksieck, Paris, 1997, Pierre Brunel adopta uma perspectiva de abordagem do poético-musical que vê na reciprocidade e na contaminação permanentemente reversível poesia / música a natureza essencial dos dois fenómenos. Por isso, a dado passo, confessa: «Pour moi e en moi, la musique et la littérature forment des arpèges composés. Je les ai toujours associées, et je les crois inséparables. Car comme pour la “poésie pure” qui fit florès au temps de l’abbé Bremond, la musique pure ocupe une position intenable.» Há, evidentemente, dentro de uma estratégia de nobilitação de um herói com quem o público mantenha um vínculo identificador, uma acentuada tonalidade lírica no «Cândido» bernsteiniano, associada à ligação intercortada deste com Cunegundes, mas essa tonalidade de modo nenhum aparece na novela de base, seja em menor, seja em equivalente intensidade. E não apenas há, entre um e outro textos, distanciamento a esse nível, como se detecta também outra ordem de desvios em relação ao texto de base: se neste, por exemplo, é através do relato panglossiano que Cândido fica a saber do desastre no castelo de Thunder-ten-tronckh e da morte da sua Cunegundes, distintamente, no texto bernsteiniano, Cândido é colocado lá, choroso entre as ruínas ainda fumegantes do ataque búlgaro, à procura do cadáver da sua amada. De resto, na novela de base, quando muito, a efusão lírica é pseudo-lírica e corresponde à dessacralização e carnavalização de lugares-comuns assertivos e sentimentais, e cada lamentação apaixonada, a cada frustrado reencontro ou desgostosa perda de Cândido, e apenas hiperbolizam um registo paródico, porque a ficção estandardiza e parodia a funcionalidade dos sentimentos, na medida em que lhes é contíguo o desfiguramento, o prosaico, a doença, outra ordem de sofrimentos perante a qual toda a efusão lírica perde a força, esvaziando-a de quaisquer outras implicações de tipo profundo. Há portanto, entre os elementos no plano da narrativa de base e os diálogos e didascálias do texto adaptado, discrepâncias tonais, oscilações entre o registo lírico e o paródico, distanciamentos. Isso mesmo se demonstra no quadro comparativo seguinte, sendo que da música, na sua plangente dramatização, quer dos lamentos de Cândido, por se ver expulso, quer da perda precoce e brutal de Cunegundes, resulta um reforço claro da dimensão lírica, do meu ponto de vista, conforme já expus, indetectável no texto de base:

Cândido voltaireano
Cândido bernsteiniano
Capítulos I, § 7, e II, § 1; Capítulo IV, § 8.
Introdução da ária
Um dia, Cunegundes, andando a passear junto do castelo, no pequeno bosque a que chamavam parque, viu entre os arbustos o Dr. Pangloss a dar uma lição de física experimental à criada de quarto de sua mãe, uma moreninha muito linda e muito dócil. Como a menina Cunegundes tinha muita inclinação para as ciências, observou, sem fazer barulho algum, as reiteradas experiências de que foi testemunha. Viu claramente a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e foi-se embora toda agitada, pensativa e cheia de desejo de ser sábia, pensando que ela bem podia ser a razão suficiente do jovem Cândido, como este podia ser a sua. Quando voltou para o castelo, encontrou Cândido e corou. Cândido corou também. Ela deu-lhe os bons-dias com uma voz entrecortada e Cândido falou-lhe sem saber o que dizia. No dia seguinte, depois do jantar, quando se levantavam da mesa, Cunegundes e Cândido encontraram-se atrás de um biombo. Cunegundes deixou cair o lenço, Cândido apanhou-o; ela segurou-lhe inocentemente a mão; o jovem beijou-lhe inocentemente a mão com uma vivacidade, uma sensibilidade, uma graça, muito particulares; as bocas encontraram-se, os olhos inflamaram-se, os joelhos tremeram, as mãos desatinaram. O Sr. Barão de Thunder-ten-tronckh passou ao pé do biombo e, vendo esta causa e este efeito, expulsou Cândido do castelo aos pontapés no rabo. Cunegundes desmaiou. Quando voltou a si, foi esbofeteada pela Sr.ª Baronesa e houve uma grande consternação no mais belo e agradável dos castelos. (Cândido, Cap. II, § 7).

Expulso do paraíso terrestre, Cândido caminhou durante muito tempo, sem saber para onde, chorando, erguendo os olhos ao céu, voltando-os muitas vezes para o mais belo dos castelos, que encerrava nos seus muros a mais bela das baronesazinhas. Dormiu, sem cear, no meio dos campos, entre dois regos. A neve tombava em grandes flocos. Cândido, transido de frio, arrastou-se no dia seguinte para a cidade vizinha de Waldberghoff-trarbk-dikdorff, sem dinheiro, morto de fome de cansaço. Parou tristemente à porta de uma taberna. (Cândido, Cap. II, § 1).

Cândido desmaiou ao ouvir isto. O amigo fê-lo voltar a si, dando-lhe a cheirar um pouco de vinagre que encontrou no estábulo. Cândido reabriu os olhos:
― Cunegundes morreu! Mas onde está o melhor dos mundos? De que doença morreu ela? Não seria de me ter visto expulsar a pontapé do lindo castelo do senhor seu pai?
― Não ― respondeu Pangloss ―, foi esventrada por soldados búlgaros, depois de ter sido violada tanto quando se pode sê-lo. Esmigalharam a cabeça ao Sr. Barão, que a queria defender, e cortaram a Sra. Baronesa em bocados. O meu pobre pupilo foi tratado exactamente como a irmã. Quando ao castelo, não ficou pedra sobre pedra, nem um prado, nem um carneiro, nem um pato, nem uma árvore, mas fomos bem vingados, porque os Árabes fizeram o mesmo numa baronia vizinha que pertencia a um senhor búlgaro. (Cândido, Cap. IV, § 8).
The Baron and his family are outraged. Candid is an illegitimate cousin, a social inferior. How dare he embrace the daughter of a Westphalian Baron? He is brutally expelled from Schloss Thunder-tem-Tronck and wanders alone – with only his optimism to cling to.

5. It Must Be So
(Candide’s Meditation)

CANDIDE
My world is dust now, And all I loved is dead.
Oh, let me trust now In what my master said:
“There is a sweetness in every woe.”
It must be so. It must be so.

The dawn will find me
Alone in some strange land.
But men are kindly;
They’ll give a helping hand.
So said my master, and he must know.
It must be so. It must be so.

Everyone is massacred: the Baron, Maximilian, Paquette, even Pangloss. The Baroness is cut to pieces. Cunegonde raped repeatedly before she is bayoneted to death. Among the ruins Candide searches for her corpse.

7. Candide’s Lament

CANDIDE
Cunegonde!

Cunegonde, is it true?
Is it you so still and cold, love?
Could our young joys, just begun,
Not outlast the dying sun?

When such brightness dies so soon
Can the heart find strength to bear it?
Shall I ever be consoled, love? No, I swear it
By the light of this lover’s moon.
Though I must see tomorrow’s dawn,
My heart is gone where you are gone.
Shall I ever be consoled, love? No, I swear it
By the light of this lover’s moon.
Good-bye, my love, my love, good-bye.
Cunegonde!

Fora de considerações relativamente ao registo lírico que aparece enfatizado no segundo «Cândido», há, por outro lado, a considerar o papel, dentro da totalidade do espectáculo, do texto estritamente musical e que alberga necessárias remissões concordes com o tom da narrativa de base e com o perfil das personagens e eventos narrados. Paralelamente a outras peças famosas que integram o reportório do mundo da música consagrada e cuja ubiquidade podemos bem testemunhar, interpretadas que são tanto em Tóquio como em Londres, em Nova Iorque como em Moscovo, sejam elas, essa peças, a abertura de «O Messias», de G. F. Händel, do «Barbeiro de Sevilha», ou do «Guilherme Tell», de Gioacchino Rossini, um dos trechos do «Cândido» que se mantém vivo, em perfeito estado de fulguração e candor, interpretado também obrigatoriamente em todo o mundo, é a Abertura. Por ‘abertura’ entenda-se aquela peça musical de entrada, fragmento orquestral introdutório de uma obra de grandes dimensões, como a ópera ou o oratório. Façamos um levantamento descritivo do que se pode escutar nessa Abertura, seccionemo-la, para assim podermos encontrar nos jogos melódico-rítmicos, nas alternâncias instrumentais, efeitos pertinentes de significado válidos para os dois Cândidos.
00:00 O «Cândido» bernsteiniano começa com fortíssimos acordes de metais e madeiras, anunciando uma atmosfera efectivamente grandiosa, mas que integra marcas paradoxais de outro dos tons dominantes na opereta e na novela ou conto filosófico de base (permita-se-nos a hesitação): a sátira (note-se nesse domínio o papel dos xilofones e dos sinos), funcionando esta justamente como pólo destrutivo próprio de elementos pomposos, caricaturáveis, grandiosos de uma dada realidade, ou não fosse típico satirizar precisamente a grandeza dos sistemas, das personalidades, dos poderes, cevados pelo hábito do abuso e por isso mesmo desajustados relativamente ao meio. O complexo ritmo torna-se patente desde o princípio como um dos elementos fundamentais da estética de composição em Bernstein. 00:09 Pode ouvir-se o primeiro tema da abertura pelos violinos e é possível notar-se o complexo esquema rítmico a que o compositor submeteu a exposição. 00:17 Uma ponte realizada pelos metais serve de traço de união entre os dois fragmentos. 00:21 Escuta-se de novo o primeiro tema, que é de imediato interrompido por um fragmento dançável. O acompanhamento, carregado de expressão a nível da percussão (bateria, timbales, sinos) cria um ambiente de dança próprio da música americana, com certos acentos de folclore europeu. A repetição deste dançável, levemente enriquecido na instrumentação, enche o ambiente de sonoridades de uma grande expressividade. O xilofone, com o seu cunho jocoso, e outros instrumentos sobressaem entre a orquestra. 00:39 O ambiente alegre manifesta-se claramente na exposição do segundo tema, carregado de sonoridades de circo e de grande espectáculo ao ar livre. 00:45 As madeiras salientam-se com os seus cómicos desenhos melódicos, que animam o dinâmico discurso e reforçam o mágico desenvolvimento temático da abertura. 00:51 Volta a ouvir-se o segundo tema, seguido do fragmento das cordas. As cordas retomam o motivo das madeiras e diminuem o som lentamente, para dar entrada ao fragmento seguinte. 01:04 Aqui escuta-se uma sequência baseada no tema anterior, na qual se nota o contraponto temático, que Bernstein desenvolve com mestria. 01:13 Agora é o flautim que é encarregado, juntamente com o clarinete, de traçar a ponte que introduzirá o terceiro tema desta abertura. 01:20 As cordas são as protagonistas da exposição do terceiro tema: uma jovial melodia de conteúdo amável e sedutor, em alternância com a toada de grandiosidade quase bélica do primeiro tema, a doçura de expectativas de felicidade que poderão ver-se retomadas melodicamente no dueto entre Cândido e Cunegundes. 01:33 Na repetição ouve-se o tema ligeiramente enriquecido na sua arquitectura harmónica. 01:44 Uma sequência baseada no terceiro tema serve de desenvolvimento melódico ao discurso empreendido pelas cordas. 02:02 Reaparece o tema anterior, desta vez interpretado uma oitava mais acima da da apresentação. Como nas intervenções anteriores, em cada exposição temática a orquestração está notavelmente enriquecida, dotando o tema de uma expressividade inusitada. 02:13 Como se se tratasse de uma reexposição, ouvem-se de novo os agitados acordes do princípio, que anunciam outra execução do primeiro tema. 02:18 O primeiro tema reaparece na sua forma original, sempre com o complicado ritmo que o fundamenta. 02:29 Um rufo de percussão e dos metais ergue uma ponte entre o primeiro tema e o fragmento seguinte. 02:35 Agora, o reaparecimento do segundo tema, que se ouve com uma intensidade reforçada pela instrumentação. 02:50 O motivo dos violinos dará lugar ao terceiro tema e, em seguida, servirá de contraponto à sua solene melodia. Na repetição, a instrumentação eleva mais uma vez a intensidade expressiva do material temático. 03:13 Uma ponte liga a reexposição com a coda, ou secção final de alguns andamentos ou composições, que encerrará a abertura. 03:20 A coda começa com uma apresentação temática, carregada de motivos extraídos dos temas principais, que Bernstein combina com perfeito domínio artístico. O oboé será o protagonista deste fragmento, que nos oferece uma nova melodia inspirada no ambiente geral, mas que, na realidade, não se ouvira até então, relacionados, conforme se poderá escutar ulteriormente, com a vida dissoluta de Cunegundes alternadamente sob as mãos lúbricas do cardeal arcebispo de Paris e de um judeu rico, Don Issacar. 03:40 Uma polirritmia, acentuada pela percussão e pela melodia principal dos metais, cria uma gradual aceleração do tempo, que conduz inexoravelmente ao final da abertura. 03:58 As percussões do princípio servem de desculpa para alongar um pouco mais o discurso, que apresenta uma vez mais material do primeiro tema, ligeiramente variado. 04:10 Bernstein escolheu o segundo tema para realizar uma rítmica e esplendorosa cadência, que representará o ponto final da abertura do «Cândido». Os metais e a percussão serão os protagonistas desta cadência, em que Bernstein nos convida a reconhecer os diferentes grupos instrumentais, que, com intensidades distintas, intervêm nos últimos compassos que encerram a obra e mostram o contraste tímbrico e expressivo de cada grupo em si.

8. PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO LIBRETISTICA E DE ADAPTAÇÃO NO «CÂNDIDO» BERNSTEINIANO

Que a transposição de um texto de base para uma estrutura condensada, adequada às exigências de um espectáculo desenhado para agradar às massas e para permanecer em palco o maior tempo possível, implicava, para o grupo da Broadway, opções de redesenhamento e recorte, por vezes ousadas porque profundas, tal não é nada de novo. Pode dizer-se o mesmo de muitos outros textos adaptados ao espectáculo operático, nas suas várias actualizações possíveis, ópera séria, ópera bufa ou opereta. As Bodas de Fígaro, de Mozart, ou o Fidelio, de Beethoven, por exemplo, foram objecto de alguma negociação prévia, por assim dizer, de política-de-espectáculo, envolvendo as questões de extensão e as de conveniência, e mesmo a revolucionária proto-ópera de Monteverdi, La Favola d’Orfeo, que manteve o final trágico original, poderia não o ter mantido, uma vez que era comum, para agradar a patronos e mecenas e porque os pedidos destes deveriam, por necessidade, ser obedecidos, ir ao ponto de adulterar as narrativas de base, tal como acontecera com Jacopo Peri, em composições anteriores, das quais certamente Monteverdi era conhecedor, em que Orfeu não perdia irremediavelmente Eurídice. Tais libretistas e tais textos encontravam-se, porém, sob o controlo do compositor, fosse de um Mozart, vítima dos constrangimentos e dependências inerentes ao Ancien Regime, vítima, portanto, de uma revolução burguesa por haver no contexto austríaco pela qual o peso e a autoridade do criador-autor poderia ser bem melhor compensado, em colaboração exclusiva, a partir de 1785, com Lorenzo da Ponte, libretista de As Bodas de Fígaro, Don Giovanni, Così fan tutte e A Clemência de Tito; ou de um temperamental Beethoven, cioso e inflexível nas suas opções, alheias às exigências de um público aquando do seu primeiro Fidelio, já que o segundo correspondeu a uma relutante harmonização com princípios de eficácia a que desejaria manter-se indiferente. Pelo contrário, no «Cândido» bernsteiniano, é toda uma equipa vasta, em trabalho e sinergia, a pensar, por experiência e abertos à experiência, sobre o que poderá colher efeitos bem sucedidos junto do público que conhecem e sobre o que está condenado à reprovação generalizada. Trata-se de um processo interminável, sujeito a inúmeras evoluções e a incontáveis versões e onde o princípio do sucesso e do lucro tinha de ser levado em grande conta. O tempo e a sensibilidade dos maestros que retomaram o «Cândido» bernsteiniano permitiu que se consolidasse, dentre várias, uma versão considerada canónica, mas tal não se fez à revelia de uma suficiente e exigente experiência de recepção nas modalidades possíveis: o conhecimento, enquanto espectadores da totalidade do espectáculo propriamente, e outras formas, mais imperfeitas e parciais, de mediação da substância musical.

A anteceder tal processo no tempo, deve dizer-se que a constituição do espectáculo original conduziu à experimentação de versões necessariamente por consolidar, em estado evolutivo, rumo a uma forma, mais uma vez por experiência, e em que a palavra aclamatória do público teria de ter peso decisivo. Cenas, solos, árias dialogadas, revestidas da respectiva orquestração, nos seus efeitos, no seu efectivo conseguimento, foram submetidas ao crivo e ao teste de incontáveis repetições e sabe-se serem inúmeras as supressões, porque ser o jogo do tempo um que exige sacrifícios.

Dentro desta lógica, não é por acaso que, na transposição da parte final do Capítulo III e quase todo o capítulo IV da narrativa de base, para efeitos de impacto favorável no público, nos quais o Doutor Pangloss justifica a bondade da sífilis e como ela foi o preço mínimo a pagar por grandes benefícios civilizacionais, o que se verifica é um reajuste de blocos inteiros de diálogo ou narrativos que mudam de lugar no que a uma sequencialidade servil com o texto de base diz respeito. Mudam também os espaços físicos da acção ou os aludidos e mesmo, tratando-se de diálogos, muda o interlocutor; há também acrescentamentos e supressões no plano da textualidade, pois visa-se que, evitando prolongamentos da acção e procurando concentrar o máximo de informação e vivacidade no mínimo de tempo possível, o público não perca a ligação estabelecida com a história e com as personagens. Pertence ao mesmo capítulo IV a descrição, por parte de Pangloss a Cândido, do glorioso percurso genealógico da sífilis, «love’s disease» a ‘doença do amor’, até o atingir por intermédio de Paquette, mas, na estrutura do espectáculo, obviamente transformado e adaptado segundo estratégias de condensação e processos retóricos próprios do texto poético, transformações que ficaram sob a responsabilidade quase integral de William Wilbur, tal texto surge enquadrado na cena do Auto-da-Fé inquisitorial lisboeta, em que diante dos inquisidores, Pangloss grita que o não podem executar, pois está «demasiado doente para morrer.» e passa a explicar porquê. Percebe-se como objectivos destas alterações, destes reposicionamentos textuais, destas deslocações de elementos espaciais, contextuais ou outros, da novela de base para as sequências do espectáculo a procura de formas potenciadoras dos mecanismo do humor, da atenção e da vinculação do público às personagens:

Cândido voltaireano
Cândido bernsteiniano
Final do Capítulo III, § 14, e Capítulo IV
Introdução da ária
No dia seguinte, Quando passeava pelas ruas, encontrou um pedinte coberto de pústulas, de olhar amortecido, a ponta do nariz roída, a boca torcida, os dentes negros, falando pela garganta e atacado de uma tosse tão violenta que escarrava um dente de cada vez que tossia.

CAPÍTULO IV

Como Cândido encontrou o seu antigo mestre de filosofia,
o Dr. Pangloss, e o que lhe aconteceu

Cândido, mais comovido ainda de compaixão do que de horror, deu a este pavoroso mendigo os dois florins que tinha recebido do seu honesto anabaptista. O fantasma olhou fixamente para ele e, debulhado em lágrimas, saltou-lhe ao pescoço. Cândido, assustado, recuou:
― Ai! ― disse o miserável ao outro miserável ―, já não reconheceis o vosso amigo Pangloss? (...)

Pangloss respondeu nestes termos:
― Lembrais-vos, meu caro Cândido, de Paquette, aquela linda criada da nossa augusta baronesa? Gozei nos seus braços as delícias do Paraíso, que se transformaram nos tormentos infernais de que me vedes devorado. Ela estava contaminada pela doença e dela deve ter morrido. Paquette recebera este presente de um frade muito sábio que a tinha ido buscar à sua origem, pois a recebera de uma velha condessa, que a tinha recebido de um capitão de cavalaria, que a devia a uma marquesa, que por seu turno a obtivera de um pajem, que a recebera de um jesuíta que, em noviço, a colhera em linha recta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. Por mim, não a transmitirei a ninguém, porque estou quase a morrer.
― Oh, Pangloss ― exclamou Cândido ―, que estranha genealogia! Com certeza tem as suas raízes no Diabo!
― De modo nenhum ― replicou o grande homem. ― Era uma coisa indispensável no melhor dos mundos, um ingrediente necessário: porque se Colombo não tivesse apanhado, numa ilha da América, esta doença, que muitas vezes impede a geração e é evidentemente oposta aos grande desígnios da natureza, não teríamos o chocolate nem a cochonila. É preciso ainda observar que, pelo menos até hoje, no nosso continente, tal doença é-nos tão privativa como a controvérsia. Os Turcos, os Indianos, os Persas, os Chineses, os Siameses, os Japoneses, não a conhecem ainda; mas há uma razão suficiente par que venham a conhecê-la dentro de alguns séculos. Entretanto, ela vai fazendo progressos maravilhosos entre nós, sobretudo nos grandes exércitos constituídos por homens estipendiários, bem-educados, que decidem dos destinos dos Estados. Pode assegurar-se que, quando trinta mil homens combatem em linha de batalha contra um exército composto por igual número de homens, há cerca de vinte mil sifilíticos de cada lado.
Time passes. Entirely alone in the world and starving, Candide impulsively gives the few coins he had begged to an old man with a tin nose, worse off than himself: syphilis has rotted away several of his fingers, and left him cruelly disfigured. It is Pangloss, brought back to life in the mortuary by the pain of the anatomist’s scalpel. His faith unshaken by his experiences, he explains his condition.

8. Dear Boy
PANGLOSS
Dear boy, you will not hear me speak
With sorrow or with rancor
Of what has shrivelled my cheek
And blasted it with canker;
‘Twas Love, great Love, that did the deed,
Through Nature’s gentle laws,
And how should ill effects proceed
From so divine a cause?

Dear boy:
Sweet honey comes from bees that sting,
As you are well aware;
To one adept in reasoning,
whatever pains disease may bring
Are but the tangy seasoning
To Love’s delicious fare.
Dear Boy.

CHORUS
Sweet honey comes from bees that sting.
Dear boy.

PANGLOSS
Columbus and his men, they say,
Conveyed the virus hither,
Whereby my features rot away
And vital powers wither;
Yet had they not traversed the seas
And come infected back,
Why, think of all the luxuries
That modern life would lack!

Dear boy:
All bitter things conduce to sweet,
As this example shows;
Without the little spirochete,
We’d have no chocolate to eat
Nor would tobacco’s fragrance greet
The European nose.
Dear boy.

CHORUS
All bitter things conduce to sweet.

PANGLOSS
Each nation guards its native land
With cannon and with sentry,
Inspectors look for contraband
At every point of entry,
Yet nothing can prevent the spread
Of Love’s divine disease;
It rounds the world from bed to bed
As pretty as you please.

Dear boy:
Men worship Venus everywhere,
As may be plainly seen;
Her decorations which I bare
Are nobler than the croix de guerre,
And gained in service of our fair And universal Queen. Dear boy.

CHORUS
Men worship Venus everywhere.
Dear boy.

9. CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DO «CÂNDIDO» VOLTAIREANO

Foi certamente o cansaço por filosofias subservientes a teologias de apriorismos positivos simplistas, distantes de uma descrição realmente exacta do humano, e, portanto, em atitude de não abarcamento da crueza das realidades humanas concretas, entre as quais a guerra, que deve ter levado Voltaire a uma reacção à boa maneira iluminista e à sua boa maneira, isto é, usando daquela superficialidade contundente para denunciar, pela sátira e mediante o panfleto (senão no suporte físico, claramente pela substância textual), a violência e a maldade vitimadoras de que se reveste a passagem dos homens por esta terra. E de alguns homens mais que outros. Além da questão da providência divina, que é posta em causa na medida em que pela guerra se expandem a fé e os reinos, porque esses processos funcionam na conveniência e conivência dos poderes, e porque ainda os príncipes dessa violência surgem em muitos casos revestidos do manto da autoridade terrestre ou celeste, não seria de admirar a irritação que a publicação do «Cândido» gerou em certas instâncias, como por exemplo o Vaticano, conduzindo a medidas de força como a sua inclusão no Index de obras proibidas. Pode pensar-se que, publicasse o que publicasse, Voltaire veria sempre os seus livros indexados, mas não há dúvida de que, por exemplo, ao conduzir, ao longo de toda a novela, um ataque arrasador à poderosíssima Companhia de Jesus, só reforçaria, aos olhos daquela instituição, o papel corrosivo e perigoso da obra. Não deixa de ser curioso, no capítulo XXX, a sugestão de Martin, o pessimista de serviço, de deitar borda fora o barão, irmão de Cunegundes, e membro da ordem jesuíta:

Cândido, no fundo do seu coração, não tinha vontade alguma de desposar Cunegundes, mas a extrema impertinência do barão incitava-o a apressar o casamento e Cunegundes instava com ele tão vivamente que ele não podia voltar atrás. Consultou Pangloss, Martin e o fiel Cacambo. Pangloss pronunciou um lindo discurso, com o qual demonstrava que o barão não tinha qualquer direito sobre a irmã e que ela podia, segundo todas as leis do Império, desposar Cândido. Martin concluiu por propor que atirassem o barão ao mar. Cacambo decidiu que o melhor seria entregá-lo ao patrão levantino, fazê-lo voltar para as galês, e enviá-lo por fim para Roma, para o geral da Companhia, pelo primeiro barco que aparecesse. Toda a gente aprovou este plano que teve a concordância da velha, e decidiram não dizer nada à irmã. O plano executou-se à custa de algum dinheiro, tendo todos ficado satisfeitos por castigarem um jesuíta e punirem o orgulho de um barão alemão.

(Cândido, Cap. XXX, § 1).
Prevalece, porém, a sugestão do nativo, Cacambo, mais trabalhosa, mais humilhante e castigadora. A sugestão de Martin recorda, no nosso contexto português, o radicalismo obstinado e muitas vezes a imaginação em segunda mão revelada pelo iluminista e iluminado Pombal, na forma como deu combate aos Jesuítas do Reino. Todo o texto é, portanto, uma espécie de volta ao mundo da violência e esta o corpus da denúncia primeira da novela voltaireana: a violência da honra, a violência da ganância, a das seitas religiosas, a da tomada indevida de bens, a que aspira ao domínio absoluto do mundo. O final do capítulo IV narra a tempestade que surpreendeu Cândido, Pangloss e Tiago (o caritativo anabaptista que, ainda na Holanda, os auxiliara) a bordo de um navio e já à vista de Lisboa, para onde viajaram em negócios. E o capítulo V prolonga a referência à tempestade, consequente naufrágio e o tremor de terra: é o mal natural, perante o qual os seres humanos pouco ou nada podem fazer. Mas temos, depois, a reacção irracional da sociedade lisboeta diante daquele mal, encontrando nas nossas personagens, Cândido, Pangloss e Tiago, assim que deles se apoderaram, os bodes expiatórios. Voltaire, abordando os dois males, é ao segundo que denuncia impiedosamente. É conhecido, e já foi mencionado, o tremendo impacto, nos espíritos mais relevantes da época, da trágica sequência de eventos desencadeada pelo Grande Terramoto de Lisboa, de 1755: de um lado os subsequentes Grandes Tsunamis, os posteriores Grandes Incêndios (mal natural), de outro, as Grandes Pilhagens e as Grandes Punições Policiais (mal social). Se o «Cândido» não constitui uma resposta imediata e directa a essa interpelação da natureza – o mal natural – não deixando de espelhá-la, é fundamentalmente uma forte denúncia do mal social, das acções e opções humanas, na sua mais extrema crueldade, na sua mais requintada selvajaria, que, tendo por promotores fundamentalmente as chamadas monarquias cristãs e por vezes cristianíssimas, mas obviamente também os sultanatos e os regimes obscurantistas vigentes nas partes fascinantes do Oriente, se podem e devem combater, estando, doa a quem doer, na primeira linha desse combate, a literatura ou não tivesse ela, sob o génio voltaireano, toda a força corrosiva, todo o carácter expressivo capaz de carrear o repúdio que a intolerância e a violência, sob todos os pretextos e pontos de vista, deverá merecer. Dir-se-ia ser a lógica interna do autor que a cada acto de intolerância correspondesse um texto verdadeiramente demolidor, capaz de abolir o manto diáfano da hipocrisia e do silêncio cúmplice.

10. CAMINHOS PRECURSORES DO «CÂNDIDO» BERNSTEINIANO

Como sistematiza Andrew Porter, na resenha que faz da dimensão precursora de autores e espectáculos anteriores ao «Cândido» e relativamente a ele, a história da génese e da encenação do «Cândido» de Leonard Bernstein formam uma narração tão rica e complexa como as relativas à Carmen, de Bizet, ao Don Carlos, de Verdi, ao Fausto, de Gounod ou Aos Contos de Hoffmann, de Offenbach. Em primeiro lugar, uma sumária cronologia servirá para sugerir os anos de trabalhosa actividade e desenvolvimento – musical, teatral, profissional e político – durante os quais o «Cândido» bernsteiniano veio à luz. 1759: O Cândido de Voltaire é publicado. Ridiculariza a filosofia de que Tudo é para o Melhor no Melhor dos Mundos Possíveis; mas retrata a insatisfação do seu herói quando chega ao utópico Eldorado (onde aparentemente todas as coisas parecem ser para o melhor), e acaba numa toada de modesto, limitado, porém maduro e confiante optimismo. O livro foi publicado em Genebra, proibido em Paris, e colocado no Index do Vaticano. E passou de edição em edição. 1934: O cenário de Aaron Copland na obra de Alfred Hayes «Into The Streets May First!... Up With the sickle and hammer» vence uma competição na qual Wallingford Riegger e Elie Siegmeister são outros concorrentes e Charles Seeger com Marc Blitzstein os juízes. 1936: São produzidos o primeiro musical americano de Kurt Weill, o anti-militarista Johnny Jonson, e a escola de ópera de Copland The Second Hurricane (com o seu coro final de «That’s the ideia of freedom... It’s all men feeling free and equal»). 1939: Bernstein (com 20 anos) dirige a ópera pró-unionista de Blitzstein The Cradle Will Rock, em Harvard. 1947: Aparece a «Broadway opera», de Weill, Street Scene. 1949: Janeiro, Jerome Robbins sugere a Bernstein um musical Romeo e Juliet num cenário de uma Nova Iorque moderna. Outubro, surge a ópera de Blitzstein, Regina, adaptada da peça de Hellman, The Little Foxes. 1950: Talvez tão cedo como isto, Hellman sugere a Bernstein uma colaboração sobre o Cândido. 1951: Junho, no festival Brandeis, Bernstein dirige a versão de Blitzstein da obra Threepenny Opera, de Weill e Brecht e a estreia da sua própria Trouble in Tahiti. Julho, Dashiell Hammett, companheiro de há longo tempo de Hellman, é preso por seis meses por recusar nomear os contribuintes de um fundo de fiança para alguns comunistas que escaparam à fiança. Setembro, Bernstein casa com Felicia Montealegre. O argumentista Martin Berkley denuncia Dorothy Parker, Hammett e Hellman como comunistas à House Un-American Activities Commitee (HUAC). 1952: Hellman é intimada a comparecer à HUAC; a sua famosa carta, oferecendo-se para responder a questões acerca de ela mesma, mas recusando incriminar outros, é amplamente publicada: «Não posso nem devo obliterar a minha consciência para pactuar com as modas deste ano». 1953: Fevereiro, Wonderful Town, de Bernstein, baseada na obra My Sister Eileen, estreia na Broadway e levada à cena por mais de 500 actuações; em Abril o espectáculo é cancelado porque a publicação de esquerda, National Guardian, comprou um bloco de lugares que tenciona vender depois para angariar fundos. Junho, Bernstein dirige, de Poulenc, Mamelles de Tirésias no festival de Brandeis. Dezembro, Bernstein dirige Medea, de Cherubini, com Maria Callas, no La Scala. 1954: Verão, começa o trabalho sobre o Cândido, mas Hellman naquela altura concentra-se na obra The Lark, uma adaptação de Anouilh, com música incidental de Bernstein que também escreve a banda sonora do filme de Kazan, On The Waterfront. 1955: Fevereiro, uma cópia preliminar de «Música para o Cândido», agora na livraria do Congresso, é reproduzida. Verão, o trabalho sobre o Cândido é retomado. Setembro, é iniciada também a obra West Side Story. Novembro, estreia The Lark na Broadway e as actuações prolongam-se por 229 actuações. 1956: Março, o Cândido assume a prioridade e West Side Story é posto de lado. Outubro, é anunciado o compromisso de Bernstein como maestro assistente, co-maestro da Filarmónica de Nova Iorque para a época seguinte. O Cândido estreia em Boston (29 de Outubro), New Haven e depois em Nova Iorque (1 de Dezembro). 1957: Fevereiro, terminam as actuações de Cândido na Broadway, depois de 73 espectáculos. Bernstein escreve no seu diário: «O Cândido chegou e partiu; a Filarmónica tem sido dirigida; regressemos ao Romeo. A partir daqui, nada perturbará o projecto». West Side Story estreia em Washington a 19 de Agosto e chega a Nova Iorque, através de Philadelphia, a 27 de Setembro. Bernstein é designado director musical da Filarmónica de Nova Iorque.O mal existe. Seja ele moral, seja social, seja natural. E o mal, à época de Bernstein, era marcado por duras incertezas relativamente ao braço de ferro travado, tendo como teatro de operações o Mundo, entre as duas superpotências, Estados Unidos e URSS. A experiência utópica, farol de esperança para muitos no mundo, que constituíra a revolução de Outubro, surgia agora toldada pelo estalinismo. Este era um tempo em que as pessoas receptivas aos altos ideais da revolução russa haviam sido abaladas pelas realidades da Rússia de Estaline e lutavam por descobrir se haveria um decente e possível caminho entre um capitalismo governado pela ganância, por um lado, e, por outro, e a tirania soviética. As suas tentativas não foram facilitadas pela obscena tarefa da HUAC do senador McCarthy de caça às bruxas. Do ponto de vista artístico, havia por parte dos principais maestros, nas suas obras na Broadway, Kurt Weill, Mark Blitzstein e Bernstein, a procura de variados modos explorar as possibilidades de dizer algo de sério dentro do idioma comercial em circulação. Ao mesmo tempo, Weill, Blitzstein e Bernstein esforçavam-se enormemente por escrever música da Broadway que conquistasse o sucesso popular sem comprometer os seus próprios níveis de exigência artística. Uma das alegrias do Cândido é ter sido tão bem composto. O “músico sério” pode deleitar-se na sua inventividade em modos comparáveis aos de A Flauta Mágica, aos de Le Comte Ory, de Rossini, aos de Bartered Bride, de Smetana.

11. A MULHER NO «CÂNDIDO» E AS «PINK-THIGS» DOS ANOS 50 NORTE-AMERICANOS

A Cunegundes bernsteiniana, na sua dimensão involuntariamente caótica e trágica, tem atrás de si, não apenas a obediência aos traços gerais da personagem originária, mas uma multidão de modelos de mulher que a um tempo povoaram os libretos de óperas famosas e os lugares-comuns mesmo dos mais célebres e consagrados romances. Mas há um dado contíguo ao período da génese do espectáculo bernsteiniano que me parece de não desprezar. Pense-se na ascensão da estrela Marilyn Monroe, consabidamente sôfrega pela fama, característica em que não estava só, que ocasionalmente baseou a sua estratégia de ascenção no uso conveniente e oportuno do outro. Lembre-se o episódio Joe DiMaggio, basebolista idolatrado, católico, e as condições que se pensa ter ele proporcionado, num casamento que durou dez meses, de branqueamento moral de um passado fotográfico demasiado expositivo da actriz, segundo o que alguns aventaram. No passado, ainda como anónima Norma Jean, cobrara cinquenta dólares ao fotógrafo Tom Kelley para ser fotografada nua, em poses sensuais e sobre um manto de veludo vermelho. Porém, ondas de moralidade à época varriam a sociedade norte-americana, como o código Hays de censura ou o início do período de “caça às bruxas” levado a cabo pelo senador republicano Joseph Raymond McCarthy, à frente do Comité das Actividades Não-Americanas. Arrolada pelas circunstâncias, objecto da cupidez dos vastos públicos, o facto era que Marilyn existia para alcançar a fama. Cada passo que dava, cada golfada de ar que inspirava e cada sorriso que debitava iam nesse sentido. Muitos não hesitarão em apontar como ponto alto da sua sexualidade a relação com as câmaras, o felino instinto que, à vista de uma objectiva ou à cintilação de um flash, a fazia metamorfosear-se numa torrente de simpatia e fotogenia e como encarnação dos sonhos do cidadão comum. Mas, apesar de a sua vida pública ser isso, a transmissão ao outro, isto é, a todos os outros que a idolatravam, pelo mundo fora, de uma imagem de sonho, a realidade de Marilyn assentava na argamassa de que são feitos os pesadelos. Por outras palavras, a criação de um mito de sucesso impossibilitava a harmonia em vida. O que me parece no tratamento da mulher no «Cândido» bernsteiniano é, por um lado, a impossibilidade de fuga ao retrato do posicionamento da mulher como condenada a factores de degradação múltipla e à queda, levada por circunstâncias a que fracamente poderá resistir e, por outro, ter implicações suficientes o facto incontestável de época que constituiu a sucessão de estrelas, a fabricação de mitos femininos, mal ou bem sucedidos, enquanto conservassem intactos os factores de encanto, sobretudo por parte da poderosa indústria cinematográfica de Hollywood. Ora, sinédoque da totalidade da mulher, são as pernas, as róseas pernas de todas as loiras promovidas e, portanto, o sintomático esvaziamento da pessoa por trás da loira a mitificar. Pertencerá aos anais dos anos cinquenta esta febre colectiva pela estrela-mulher, pelo seu carisma ou falta dele, mas indiscutivelmente pelas suas “pink thigs”. O mesmo esvaziamento da condição de pessoa, faz da Cunegundes bernsteiniana (aqui colocada em Paris) passível de um tratamento canónico, dentro da famosa paródia do soprano do século XIX. Submersas pela desgraça, Cunegundes e a velha associam-se e encorajam-se num mesmo plano simbiótico de sobrevivência porque lá, onde o corpo proporciona prazer a quem o requisita e a dignidade se torna toxicamente vendável, em Lisboa, alternando na cama com o judeu Issacar e com o Inquisidor e Monsenhor (texto da novela de base) pode beneficiar-se em matéria de protecção e acúmulo de alguns bens e de alguns luxos. Veja-se o ambiente e o contexto descrito na ária 12. Glitter and Be Gay:
Cândido voltaireano
Cândido bernsteiniano
Capítulo VIII
Introdução da ária
Ela retomou assim o fio da sua história:
― Um capitão búlgaro entrou, viu-me toda cheia de sangue, e o soldado pareceu não dar por ele. O capitão irritou-se com a falta de respeito que aquele bruto lhe testemunhava e matou-o sobre o meu corpo. Em seguida fez-me tratar e levou-me como prisioneira de guerra para o seu quartel. Passei a lavar-lhe as poucas camisas que possuía e fazia-lhe a comida. É preciso confessar-vos que ele me achava muito linda, e não vos negarei que ele era bem feito e tinha a pele branca e macia. Possuía, porém, pouco espírito, pouca filosofia. Via-se bem que não tinha sido educado pelo Doutor Pangloss. Ao fim de três meses, tendo perdido todo o dinheiro e tendo-se aborrecido de mim, vendeu-me a um judeu chamado D. Issacar, que traficava em Holanda e Portugal e gostava muito de mulheres. Esse judeu apaixonou-se por mim, mas não conseguiu vencer a minha resistência. Defendi-me melhor dele que do soldado búlgaro. Uma mulher de honra pode ser violada uma vez, mas a sua virtude fortalece-se.

«O judeu, para me conquistar, trouxe-me para esta casa de campo em que estamos agora. Julgara até então que nada havia no mundo que fosse tão belo como o castelo de Thunder-ten-tronckh, mas estava enganada, tenho de o reconhecer.
The Jew enjoys her on Tuesdays, Thursdays and his Sabbath, the Cardinal Archbishop on Wednesdays, Fridays and his Sabbath. On Saturday night there is occasionally some dispute over the Sabbath as defined in the Judaic and Christian traditions. Sad at heart, the mysterious beauty sees herself compelled to glitter, forced to be gay.

12. Glitter and Be Gay
CUNEGONDE
Glitter and be gay,
That’s the part I play:
Here I am in Paris, France,
Forced to bend my soul
To a sordid role,
Victimized by bitter, bitter circumstance.
Alas for me! Had I remained
Beside my lady mother,
My virtue had remained unstained
Until my maiden hand was gained
By some Grand Duke or other.
Ah, ‘twas not to be;
Hash necessity

O inquisidor-mor, viu-me um dia na missa. Mirou-me muito e mandou-me dizer que me queria falar acerca de um assunto particular. Fui levada ao seu palácio, falei-lhe do meu nascimento e ele fez-me ver quanto era desonroso para mim pertencer a um israelita. Propuseram da sua parte a D. Issacar ceder-me a Monsenhor. Mas D. Issacar, que é o banqueiro da corte, homem de fortuna, recusou a proposta. O inquisidor ameaçou-o com um auto de fé; e o meu judeu, intimidado, concluiu com ele um negócio em virtude do qual a casa e eu pertenceríamos, em comum, a ambos, dispondo o judeu das segundas, quartas e sábados, e o inquisidor dos restantes dos dias da semana.

«Há seis meses que esta convenção subsiste, não sem algumas discussões, porque muitas vezes é indeciso se a noite de Sábado para Domingo pertence à antiga lei ou à nova. Quanto a mim, até agora, tenho resistido a ambos, e creio que é essa a razão de ser ainda amada por eles.
«Enfim, para afastar o flagelo dos tremores de terra e intimidar D. Issacar, aprouve a Monsenhor, o Inquisidor, mandar celebrar um auto de fé. Tive a honra de ser convidada e deram-me um lugar esplêndido. Entre a missa e a execução, serviram refrescos às damas. Fiquei, na verdade, horrorizada quando vi queimar o dois judeus e o biscainho que tinha casado com a comadre, mas foi tal a minha surpresa, o meu horror e a minha perturbação quando vi, dentro de um sambenito e com uma mitra na cabeça, uma figura que se assemelhava à de Pangloss, que esfreguei os olhos, fixei o olhar e desmaiei quando o vi ser enforcado. Mal tinha recobrado os sentidos, quando vos vi completamente nu. Foi então o cúmulo do horror, da consternação, da dor, do desespero. Dir-vos-ei, sem mentir, que a vossa pele é ainda mais branca que a do capitão búlgaro e que tendes uma carnação ainda mais perfeita que a dele. Esta vista agravou os sentimentos que me dominavam, que me devoravam. Queria gritar, queria dizer: ‘Parai, bárbaros!’, mas faltou-me a voz. Além disso, os meus gritos teriam sido inúteis. Enquanto vos açoitavam, dizia comigo: ‘Como é possível que o amável Cândido e o sábio Pangloss se encontrem em Lisboa, um para receber um cento de açoites e o outro para ser enforcado, por ordem de Monsenhor, o inquisidor, de quem sou a bem-amada?
Brought me this gild cage.
Born to higher things,
Here I droop my wings,
Ah! Singing of a sorrow nothing can assuage.
And yet of course I rather like to revel,
ah, ah!
I have no strong objection to champagne,
ah, ah!
My wardrobe is expensive as the devil,
ah, ah!
Perhaps it is ignoble to complain...
Enough, enough
Of being basely tearful!
I’ll show my noble stuff
By being bright and cheerful!
AH ha ha ha ha! Ha!
Pearls and ruby rings...
Ah, how can worldly things
Take the place of honor lost?
Can they compensate,
For my fallen state,
Purchased as they were at such an awful coast?
Bracelets... Lavalieres...
Can they dry my tears?
Can they blind my eyes to shame?
Can the brightest brooch
Shield me from reproach?
Can the purest diamond purify my name?
And yet of course these trinkets are endearing,
ah, ah!
I’m oh, so glad my sapphire is a star,
ah, ah!
If I’m not pure, at least my jewels are!
Enough, enough!
I’ll take their diamond necklace And show my noble stuff By being gay and reckless!
AH ha ha ha ha! Ha!
Observe how bravely I conceal
The dreadful, dreadful shame I feel.
Ah ha ha ha ha! Ha!
I rather like a twenty-carat earring,
ah, ah!
If I’m not pure, at least my jewels are!
Enough, enough!
I’ll take their diamond necklace And show my noble stuff By being gay and reckless!
AH ha ha ha ha! Ha!
Observe how bravely I conceal
The dreadful, dreadful shame I feel.
AH ha ha ha ha! Ha!
De resto, só no fim da narrativa, já quando não possui quaisquer atractivos e se torna a figura desagradável e desconfortável do cansativo e típico queixume doméstico, é que finalmente se efectiva a reunião definitiva de amor com Cândido, fruto tardio, desprovido já da fulguração virginal existente na paixão originária.

12. A QUESTÃO DA MÚSICA - ESBOÇO DE UMA CONCLUSÃO

O «Cândido» que a equipa da Broadway constituiu provocou-me, remetendo-me para uma construção de saberes mais específicos quanto ao tempo da criação, aos autores e às obras musicais e justificou, confirmando-o, o meu enorme interesse pela música em geral e pela clássica ou classicizante em particular. Aquela gravação concreta entroncou também num meu não menor interesse pela literatura, pela história, pela filosofia, pelo valor estético subjacente afinal a quaisquer textos que os séculos foram revestindo também de música: veja-se a prodigiosa amplificação lírica que, entre os fins do século XVI e inícios do XVII, Monteverdi, no seu ciclo madrigalístico mantuano, faz musicalmente de Tasso, ao mesmo tempo que, de modo a muitos títulos revolucionário e inovador, ajudou a desenvolver e a transformar todos os aspectos da música com que lidou ao longo da vida.

Por outro lado, foi o mesmo «Cândido» que me permitiu um alargamento de percepção de um sistema de referências cruzadas, de complexas remissões e recombinações dentro das artes. Pode dizer-se que muitas vezes os textos esperaram séculos pela música: os Carmina goliardescos (se eventualmente a tiveram no século XIII, tiveram-na de novo no XX) e o mesmo para os ainda mais antigos poemas de Catulo, os Catuli Carmina: foi preciso que esperassem afinal pelo revivalismo pagão orffiano, imbricado, sabêmo-lo bem hoje, nas promessas eufóricas de supremacia sem remorso com que, ecoando algum Nietzsche e algum evolucionismo transposto para a ordem e a lógica das relações pessoa-pessoa, povo-povo, emergira o nacional-socialismo alemão; coisa semelhante e diversa, até certo ponto, do que se passou com o Shostakovich positivo e optimista inicial, quando, paralelamente às suas obras «institucionais» soviéticas, corria o sangue e, patriótica, a história se revestia de uma nova teleologia, de uma escatologia nova.

A fome de beleza, de sublimidade, é-me congénita e penso que por mais objectivo que visasse ser este meu trabalho, na medida em que lidou com o fenómeno complexo e rico que a constituição de um espectáculo como o «Cândido» pressupôs, nos cortes, nas obediências e nas concessões exigidos pelos vínculos históricos do mesmo espectáculo com o conto voltaireano comparatisticamente a ter em conta, ele foi também, e antes de mais, um olhar pessoal e a pessoal expressão dos efeitos que a arte necessariamente desencadeou na minha recepção.

Foi sobre a intemporalidade do fenómeno musical, em sentido puro, que o meu interesse recaiu, para além das distinções e classificações com que os séculos mais recentes organizaram o espesso acervo musical, primeiramente eurocêntrico e ocidental, mas que inclui agora, em plano de igual dignidade, as mais gerais e específicas manifestações musicais planetárias. A questão de reconhecer rigidamente neste «Cândido» um musical, uma opereta (apenas por questões operativas privilegiamos esta última classificação), uma ópera leve, uma ópera cómica ou simplesmente uma ópera é, creio, completamente impertinente porque essa pergunta não pode ser colocada, sem se tornar ridícula, a obras como Die Zauberflöte mozartinana ou La Belle Hélène, offenbachiana, embora carregadas de humor, ela, como outras, não deixam de recobrir questões importantes e sérias.

Resta a nítida consciência de que antes de haver quaisquer classificações e delimitações temporais – música sacra ou profana, música antiga, música barroca, música romântica – há a música. Reconstituir uma forma em que texto-poeisis e música são aquela totalidade artística indissolúvel, não passível de considerações em separado, é hoje matéria de constatação e também de fruição. Fora de veleidades classificativas, a música, quando é sujeita a arqueologia, ressuscita efectivamente, mas há impossibilidades e excessos, como lembra, aliás, Claus Clüver, ao situar (e demarcar-se) criticamente dos critérios classificativos das belas artes que, há cem anos, H. Butcher desejaria ter já visto recobertos por Aristóteles, coisa que não estaria de todo ao alcance do filósofo proceder: «Mesmo se Aristóteles tivesse feito tal classificação dos géneros poéticos, os seus critérios teriam sido de difícil aplicação à produção poética do tempo de Butcher, pois teriam inevitavelmente ligado considerações «literárias» e considerações «musicais», como as chamaríamos hoje. Para Aristóteles, não teria sido «lógico» desenvolver teorias independentes para a poesia e para a música – simplesmente porque na prática as duas artes eram então inseparáveis.» (Claus Clüver, Estudos Interartes: Introdução Crítica, Tradução H. Buescu, 2001).

A música de que se revestiu este «Cândido», pelo seu encanto e por vezes sublimidade, sobretudo nos transportes líricos onde a humanidade do protagonista se desvela, redime todo um trajecto anti-pícaro e anti-ulisseu das personagens, afinal, também tantas vezes dos homens concretos, capazes de se comportar tão candidamente quanto aquelas, num mundo aliás obeso de velhacarias. Vemos que somente após uma difícil demanda é que as personagens se regeneram moralmente, e regeneram-se na mesma proporção em que decaem e apodrecem, pelo cansaço, pela doença e pela velhice; somente após toda a espécie de sofrimentos às mãos dos homens, somente quando se decidem à recusa duma filosofia que omite e oblitera aquilo em que a vida também consiste, é que todos (Cândido, Pangloss, Cunegundes, a Velha Senhora, Martin, Paquette, Cacambo e o Irmão Giroflée) se resignam, não à desgraça, mas a uma vida só inteligível e suportável na medida em que se trabalhe e cultive o próprio jardim.

13. BIBLIOGRAFIA

BRUNEL, Pierre, Les Arpèges Composés, ed. Klincksieck, Paris, 1997;

CLÜVER, Claus, Estudos Interartes: Introdução Crítica, Tradução H. Buescu, 2001;

MENDEZ. Alberto, A Grande Música Passo a Passo, Ediclube, 1994.

MONTACLAIR, Florent, (direcction) La Littérature et les arts, vol. I, Col. Lit. Comp., 1997.

NEIMAN, Susan, Evil in the Modern Thought, ed.

ROBB, Graham, in TLS, "Surviving the best of all possible worlds", de 7/18/97;

SARAIVA, José Hermano, História Concisa de Portugal, ed. Europa-América, 9.ª ed., 1984;

STANLEY, John, Música Clássica – Grandes Compositores e as Suas Obras-Primas, ed. LivroseLivros, 1994;