quarta-feira, 5 de setembro de 2007

4. NOTAS PARA UM LEVANTAMENTO CONTEXTUAL DO «CÂNDIDO» VOLTAIREANO: ESBOÇO DE UMA SÍNTESE

Da leitura que imediatamente efectuei resultou uma mais alargada consciência das múltiplas implicações, não apenas filosóficas, do texto de partida. Ele termina por ostentar conclusivamente o princípio filosófico de rejeição da filosofia, sobretudo uma filosofia tagarela e irrealista, obstáculo a uma apreensão natural e empírica de componentes essenciais, porque saudáveis, da existência humana. Talvez esteja por cartografar devidamente o impacto de certos eventos naturais nas orientações filosóficas de fundo ao longo dos últimos milénios, mas o que é sabido é que Voltaire, uma das mentes mais marcadas pelo grande terramoto de Lisboa, e após reagir com o seu polémico poema, reverte a sua atenção da metafísica para os metafísicos. É feliz Graham Robb quando, in TLS, "Surviving the best of all possible worlds", de 7/18/97, e a propósito de uma adaptação por Murray Gold do «Cândido» voltaireano ao teatro, diz resumidamente o seguinte (obviamente os sublinhado pertencem-nos):

«The necessary chain of cause and effect is this. On All Saints' Day, 1755, while Voltaire tends his garden at his Swiss retreat, Lisbon is destroyed by an earthquake; 30,000 people die for no apparent reason. Voltaire publishes a poem on the disaster, asking, "Why do we suffer under an equitable Lord?" The poem presents a hypochondriac's view of the universe and raises a storm of protest. Voltaire is accused of questioning the notion of divine benevolence. Turning his attention now from metaphysics to metaphysicians, he chooses the perfect subject for a short story: a breakneck tour of the world incorporating almost every form of cruelty and suffering - lively, varied and yet, as Candide's servant observes, "curiously repetitive". Candide ou l'optimisme appears in 1759 and is eventually recognized as one of Voltaire's masterpieces.»

O terramoto de Lisboa tornou-se efectivamente um dado emblemático, relevante para o modo de ver o mundo pelo homem europeu daquele século. Foi um facto marcante para o tempo. Isso mesmo o reconhece Susan Neiman, na sua obra, Evil in the Modern Thought, considerando precisamente ter sido esse terramoto uma revolução coperniciana no modo de perceber modo funcionava o mal no mundo, segundo o pensamento do Iluminismo. Uma das sinopses da obra referida sintetiza-o inteligente e pertinentemente. Colocado ou não em termos teológicos, o mal põe um problema acerca da inteligibilidade do mundo. Ele confronta a filosofia com questões fundamentais: Haverá sentido num mundo em que os inocentes sofrem? Poderá a crença num poder divino ou no progresso humano sobreviver a uma catalogação do mal? Será o mal um mal profundo ou um mal banal? Neiman argumenta que estas questões conduzem a filosofia moderna. Os filósofos tradicionais, de Leibniz até Hegel, procuraram, por vezes toscamente, defender o Criador de um mundo que contém o mal. Inevitavelmente, os seus esforços, combinados com os de figuras mais literárias como Pope, Voltaire, e o Marquês de Sade, erodiram a fé na benevolência e providência, assim como no poder e relevância de Deus, até que, por fim, Nietzsche declarou que Ele havia sido assassinado. Aqueles também albergaram a distinção entre o mal natural e o mal moral, distinção que nós hoje tomamos por certa. Neiman passa depois à consideração da resposta da filosofia ao Holocausto como o mal moral final, concluindo que duas estâncias básicas correm através do pensamento moderno. Uma, de Rousseau a Arendt, insiste que a moral nos exige tornar o mal inteligível. A outra, de Voltaire a Adorno, insiste que a moral nos exige o contrário.

Do ponto de vista de Neiman, o mal tem algo que o homem leva para si mesmo e a intervenção de Deus não pode ser vista como punição, mas como algo que funciona dentro da natureza e segundo as suas leis. Pelo contrário, o mal moral que subjaz a qualquer crime cometido ou que se deseja cometer já está sob o controlo do homem e nada tem a ver com Deus. Deus nada tem a ver com o que vai mal no mundo porque se trata do resultado das leis naturais, e não de um castigo arbitrário. O outro mal, denunciado, exposto, quer na literatura quer, como defende a teologia, a exegese e a antropologia modernas, no próprio Antigo Testamento, é o mal que o homem faz a si mesmo. Não há combate a todas as formas de mal, ocultando-as, mas descrevendo-as, expondo-as, para que também se dobrem, sejam detestadas e desapareçam na processualidade histórica.

Historicamente, o terramoto de Lisboa corresponde a um momento da transição de um súbito domínio católico para um súbito domínio protestante, e Lisboa, que era o principal centro de comercial da Europa, embora os ingleses tivessem uma grande preponderância lá, é ultrapassada, sendo que todo o comércio, a partir do terramoto, ultrapassando Lisboa, começa a fazer-se por outros centros. A intriga pode resumir-se em breves pinceladas e é possível acompanhar ainda o mesmo Graham Robb, in TLS, "Surviving the best of all possible worlds", de 7/18/97:

«The Lisbon earthquake was a good thing after all. This would be the view of Dr Pangloss, resident philosopher in the Westphalian castle of Baron Thunder-ten-Tronckh. The Baron's illegitimate nephew, Candide, learns from Pangloss that, in this, the best of all possible worlds, all is for the best, while the Baron's beautiful daughter Cunegonde draws similarly cheerful conclusions from the lessons in "experimental physics" which Pangloss gives to a maid in the shrubbery. When the Baron discovers Candide's infatuation with Cunegonde, the hero is expelled from his "earthly paradise". Conscripted, beaten, flayed, starved, arrested by the Inquisition, covered in excrement, robbed and forced to commit murder, Candide comes to suspect that all is not for the best, though the Panglossian precepts still seem convincing at the end of a good meal. Meanwhile, the lovely Cunegonde has been raped, mutilated and sold into slavery. Pangloss is hanged and dissected, but survives to become a galley-slave. After several years of torture and humiliation, the characters are reunited. Candide bravely marries his once adored Cunegonde, now "a sight to make one envy the blind" (as Murray Gold puts it) and they all live together on a small pistachio and candied-fruit farm near Constantinople. Suffering gives way to boredom; boredom gives way to philosophical debate. A local dervish is consulted. He advises them to give up futile speculation and to mind their own business. Wisely, they devote themselves to farming and become reasonably happy.»


O sofrimento dá lugar ao aborrecimento. O aborrecimento dá lugar ao debate filosófico. Por ironia, o último capítulo da novela apresenta o trabalho como a grande solução para o grande problema do tédio e do vício, venenos da vida, piores ainda que as desgraças por que Cândido e o seu grupo, agora reunido em Constantinopla, tinha passado. Mas o processo de descoberta do óbvio, da velha felicidade suficiente através da mediania, um projecto, afinal, de felicidade resistente à acção danosa da filosofia, não poderia ser automático. É justamente a velha que, fazendo um resumo, apresenta primeiramente o problema:

Cândido, Martin e Pangloss discutiam frequentemente sobre moral e metafísica. Viam muitas vezes passar sob as janelas da casa barcos carregados de efêndis, paxás e cádis que eram exilados para Lemnos, Mitilene e Erzerum; outros cádis, outros paxás e efêndis tomavam o lugar deles e eram, por seu turno, expulsos. Podiam também contemplar as cabeças bem empalhadas que iam apresentar à Sublime Porta.

Estes espectáculos faziam redobrar as discussões; quando não se discutia, o aborrecimento era tão grande que a velha ousou dizer-lhes um dia:
― Gostava de saber se será pior ser violada cem vezes por piratas negros, ter uma nádega cortada, sofrer as chibatadas dos Búlgaros, ser açoitado e enforcado num auto-de-fé e depois dissecado, remar nas galés, experimentar enfim todas as misérias por que temos passado ou estar aqui sem fazer nada?
― Eis um grande problema ― disse Cândido.

(Cândido, Cap. XXX, §§ 3,4, 5 e 6).

Mas para se chegar a uma conclusão que satisfizesse todas as deambulações do Cândido que há em cada qual, que pacificasse as ânsias e as desgraças de um caminho tortuoso, que eliminasse o peso opressor das execuções, dos castigos, dos exílios, esgotados todos os debates e argumentações, esgotadas todas as aventuras e inquietações, uma vez que se encontram em Constantinopla, consultam um derviche, mas, desde logo, no diálogo com ele, percebe-se que a sua sapiência apenas carreia pontos de vista prudenciais, certamente interessantes no que respeita ao sentido de autopreservação, mas passivos, alheados e pacíficos, no que o pacífico tem de conivente com o mal, coisa precisamente do interesse dos poderes exercidos fora do Iluminismo, pois que dispensam bem que se pense e, portanto, que se questione a ordem imutável das coisas, que é divina, contanto beneficie sempre os mesmos, a nobreza e o clero, muito embora o Dr. Pangloss, à vista do tratamento dado aos poderosos ao longo da história, conclua que «As grandezas ― disse Pangloss ― são muito perigosas, na opinião de todos o filósofos.», demonstrando-o em seguida com inúmeros exemplos. É certo que preservar a vida, mediante o silêncio, pode ser um bom programa, mas é insustentável dentro de uma óptica de participação democrática (os salões, as lojas maçónicas, os cafés), tal como a concebia o Iluminismo, a quem interessava a difusão das ideias, o activismo político, a troca de panfletos e a elaboração de estratégias de combate na luta contra a superstição e o obscurantismo. O último capítulo, enquanto resolução dos problemas levantados pelo elencar das crueldades em acção no mundo e sobre as personagens, privilegiando a mesma ironia, a mesma mordacidade, deixa a entender a impossibilidade de continuidade indefinida do mesmo mal, porque a entropia inerente às leis da natureza, a infecundidade e o sem propósito do mal podem anulá-lo, desde que se cultive o próprio jardim. Os questionamentos essenciais que se eternizam também conduzem ao pessimismo amargo de Martin, se não houver concomitante cooperação com a natureza e esta cooperação serve igualmente de ponto de equilíbrio para o optimista e para o pessimista. Só na natureza se conciliam aquelas polaridades.

Note-se o humor acabado, que a tradução não parece enfraquecer, de que se reveste este diálogo, tratando-se de uma pose, a do derviche, hierática e absoluta, onde a filosofia não serve para questionar, mas para anestesiar do mal, do porquê de tudo, do o que fazer:

Havia na vizinhança um derviche muito famoso que passava por ser o melhor filósofo da Turquia. Foram consultá-lo. Pangloss tomou a palavra e disse-lhe:

― Mestre, vim pedir-vos que nos digais porque foi criado um animal tão estranho como o homem.
― Porque te importas com isso ― respondeu-lhe o derviche ―, se é coisa que não te diz respeito?
― Mas, reverendo padre ― insistiu Cândido ―, é horrível o mal que há no mundo.
― Que importa que haja mal ou bem? ― disse o derviche. ― Quando Sua Alteza manda um navio ao Egipto, trata, porventura, de saber se os ratos que vão a bordo estão à sua vontade ou não?
― Que devemos então fazer? ― disse Pangloss.
― Calares-te ― opinou o derviche.
― Seria para mim muito mais lisonjeiro ― disse Pangloss ― discorrer um pouco convosco sobre causas e efeitos, o melhor dos mundos possíveis, a origem do mal, a natureza da alma e a harmonia preestabelecida.

O derviche, a estas palavras, fechou-lhes a porta na cara.

(Cândido, Cap. XXX, do § 12 ao 20).

Não é, ao contrário do que faz sugerir a recensão de Robb, que nesse aspecto é simplificadora, a teoria do derviche consultado aquele que concretiza o melhor caminho ao grupo de Cândido, caminho aliás que aponta para a grande indiferença divina relativamente aos ratos no navio que Sua Alteza envia ao Egipto, perspectiva teísta com que Voltaire basicamente se identificava, mas a prática de um homem comum com quem se deparam, regressados daquele estranho colóquio.

Embora igualmente desinteressado de nomes e posições de poder, é ele que parece possuir o bem senso para uma vida satisfatória, regrada, baseada no trabalho e na cooperação familiar, dela extraindo todos os requisitos do bem-estar sempre assente no trabalho. No fim, não foi deslocado de todas estas conclusões simples que Cândido, enquanto ia «reflectindo profundamente» sobre o discurso do turco, a certo passo diz a Pangloss e a Martin que aquele bom velho parecia ter uma sorte bem preferível à daqueles seis monarcas com quem haviam tido a honra de cear:

Esta catástrofe causou durante algumas horas grande alarido por toda a parte. Pangloss, Cândido e Martin, voltando à sua pequena propriedade, encontraram um bom velho que tomava o fresco à porta de sua casa, à sombra das laranjeiras.

Pangloss, que era tão curioso como tagarela, perguntou-lhe como se chamava o mufti que acabara de ser estrangulado.
― Não sei ― respondeu o bom homem ―, nem nunca soube o nome de qualquer mufti ou vizir. Ignoro em absoluto o caso de que falais e penso que, em geral, os que se imiscuem nos assuntos acabam miseravelmente, e bem o merecem. Mas nunca me informo do que se faz em Constantinopla. Contento-me em mandar lá vender os frutos da horta que cultivo.

Ditas estas palavras, mandou entrar os estrangeiros em sua casa; as duas filhas e os dois filhos serviram-lhe variados sorvetes, que eles próprios preparavam com sumo de cidra, laranja, limão doce e azedo, ananás, amendoim e café de Moca, sem mistura de mau café da Batávia e das ilhas. Por fim, as duas filhas deste bom muçulmano perfumaram as barbas de Cândido, Pangloss e Martin.
― Deveis ter ― disse Cândido ao turco ― uma propriedade vasta e magnífica.
― Só possuo vinte jeiras e trabalho-as com os meus filhos. O trabalho liberta-nos de três grandes males: a pobreza, o aborrecimento e o vício.
(Cândido, Cap. XXX, do § 22 ao 27).

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