quarta-feira, 5 de setembro de 2007

8. PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO LIBRETISTICA E DE ADAPTAÇÃO NO «CÂNDIDO» BERNSTEINIANO

Que a transposição de um texto de base para uma estrutura condensada, adequada às exigências de um espectáculo desenhado para agradar às massas e para permanecer em palco o maior tempo possível, implicava, para o grupo da Broadway, opções de redesenhamento e recorte, por vezes ousadas porque profundas, tal não é nada de novo. Pode dizer-se o mesmo de muitos outros textos adaptados ao espectáculo operático, nas suas várias actualizações possíveis, ópera séria, ópera bufa ou opereta. As Bodas de Fígaro, de Mozart, ou o Fidelio, de Beethoven, por exemplo, foram objecto de alguma negociação prévia, por assim dizer, de política-de-espectáculo, envolvendo as questões de extensão e as de conveniência, e mesmo a revolucionária proto-ópera de Monteverdi, La Favola d’Orfeo, que manteve o final trágico original, poderia não o ter mantido, uma vez que era comum, para agradar a patronos e mecenas e porque os pedidos destes deveriam, por necessidade, ser obedecidos, ir ao ponto de adulterar as narrativas de base, tal como acontecera com Jacopo Peri, em composições anteriores, das quais certamente Monteverdi era conhecedor, em que Orfeu não perdia irremediavelmente Eurídice. Tais libretistas e tais textos encontravam-se, porém, sob o controlo do compositor, fosse de um Mozart, vítima dos constrangimentos e dependências inerentes ao Ancien Regime, vítima, portanto, de uma revolução burguesa por haver no contexto austríaco pela qual o peso e a autoridade do criador-autor poderia ser bem melhor compensado, em colaboração exclusiva, a partir de 1785, com Lorenzo da Ponte, libretista de As Bodas de Fígaro, Don Giovanni, Così fan tutte e A Clemência de Tito; ou de um temperamental Beethoven, cioso e inflexível nas suas opções, alheias às exigências de um público aquando do seu primeiro Fidelio, já que o segundo correspondeu a uma relutante harmonização com princípios de eficácia a que desejaria manter-se indiferente. Pelo contrário, no «Cândido» bernsteiniano, é toda uma equipa vasta, em trabalho e sinergia, a pensar, por experiência e abertos à experiência, sobre o que poderá colher efeitos bem sucedidos junto do público que conhecem e sobre o que está condenado à reprovação generalizada. Trata-se de um processo interminável, sujeito a inúmeras evoluções e a incontáveis versões e onde o princípio do sucesso e do lucro tinha de ser levado em grande conta. O tempo e a sensibilidade dos maestros que retomaram o «Cândido» bernsteiniano permitiu que se consolidasse, dentre várias, uma versão considerada canónica, mas tal não se fez à revelia de uma suficiente e exigente experiência de recepção nas modalidades possíveis: o conhecimento, enquanto espectadores da totalidade do espectáculo propriamente, e outras formas, mais imperfeitas e parciais, de mediação da substância musical.

A anteceder tal processo no tempo, deve dizer-se que a constituição do espectáculo original conduziu à experimentação de versões necessariamente por consolidar, em estado evolutivo, rumo a uma forma, mais uma vez por experiência, e em que a palavra aclamatória do público teria de ter peso decisivo. Cenas, solos, árias dialogadas, revestidas da respectiva orquestração, nos seus efeitos, no seu efectivo conseguimento, foram submetidas ao crivo e ao teste de incontáveis repetições e sabe-se serem inúmeras as supressões, porque ser o jogo do tempo um que exige sacrifícios.

Dentro desta lógica, não é por acaso que, na transposição da parte final do Capítulo III e quase todo o capítulo IV da narrativa de base, para efeitos de impacto favorável no público, nos quais o Doutor Pangloss justifica a bondade da sífilis e como ela foi o preço mínimo a pagar por grandes benefícios civilizacionais, o que se verifica é um reajuste de blocos inteiros de diálogo ou narrativos que mudam de lugar no que a uma sequencialidade servil com o texto de base diz respeito. Mudam também os espaços físicos da acção ou os aludidos e mesmo, tratando-se de diálogos, muda o interlocutor; há também acrescentamentos e supressões no plano da textualidade, pois visa-se que, evitando prolongamentos da acção e procurando concentrar o máximo de informação e vivacidade no mínimo de tempo possível, o público não perca a ligação estabelecida com a história e com as personagens. Pertence ao mesmo capítulo IV a descrição, por parte de Pangloss a Cândido, do glorioso percurso genealógico da sífilis, «love’s disease» a ‘doença do amor’, até o atingir por intermédio de Paquette, mas, na estrutura do espectáculo, obviamente transformado e adaptado segundo estratégias de condensação e processos retóricos próprios do texto poético, transformações que ficaram sob a responsabilidade quase integral de William Wilbur, tal texto surge enquadrado na cena do Auto-da-Fé inquisitorial lisboeta, em que diante dos inquisidores, Pangloss grita que o não podem executar, pois está «demasiado doente para morrer.» e passa a explicar porquê. Percebe-se como objectivos destas alterações, destes reposicionamentos textuais, destas deslocações de elementos espaciais, contextuais ou outros, da novela de base para as sequências do espectáculo a procura de formas potenciadoras dos mecanismo do humor, da atenção e da vinculação do público às personagens:

Cândido voltaireano
Cândido bernsteiniano
Final do Capítulo III, § 14, e Capítulo IV
Introdução da ária
No dia seguinte, Quando passeava pelas ruas, encontrou um pedinte coberto de pústulas, de olhar amortecido, a ponta do nariz roída, a boca torcida, os dentes negros, falando pela garganta e atacado de uma tosse tão violenta que escarrava um dente de cada vez que tossia.

CAPÍTULO IV

Como Cândido encontrou o seu antigo mestre de filosofia,
o Dr. Pangloss, e o que lhe aconteceu

Cândido, mais comovido ainda de compaixão do que de horror, deu a este pavoroso mendigo os dois florins que tinha recebido do seu honesto anabaptista. O fantasma olhou fixamente para ele e, debulhado em lágrimas, saltou-lhe ao pescoço. Cândido, assustado, recuou:
― Ai! ― disse o miserável ao outro miserável ―, já não reconheceis o vosso amigo Pangloss? (...)

Pangloss respondeu nestes termos:
― Lembrais-vos, meu caro Cândido, de Paquette, aquela linda criada da nossa augusta baronesa? Gozei nos seus braços as delícias do Paraíso, que se transformaram nos tormentos infernais de que me vedes devorado. Ela estava contaminada pela doença e dela deve ter morrido. Paquette recebera este presente de um frade muito sábio que a tinha ido buscar à sua origem, pois a recebera de uma velha condessa, que a tinha recebido de um capitão de cavalaria, que a devia a uma marquesa, que por seu turno a obtivera de um pajem, que a recebera de um jesuíta que, em noviço, a colhera em linha recta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. Por mim, não a transmitirei a ninguém, porque estou quase a morrer.
― Oh, Pangloss ― exclamou Cândido ―, que estranha genealogia! Com certeza tem as suas raízes no Diabo!
― De modo nenhum ― replicou o grande homem. ― Era uma coisa indispensável no melhor dos mundos, um ingrediente necessário: porque se Colombo não tivesse apanhado, numa ilha da América, esta doença, que muitas vezes impede a geração e é evidentemente oposta aos grande desígnios da natureza, não teríamos o chocolate nem a cochonila. É preciso ainda observar que, pelo menos até hoje, no nosso continente, tal doença é-nos tão privativa como a controvérsia. Os Turcos, os Indianos, os Persas, os Chineses, os Siameses, os Japoneses, não a conhecem ainda; mas há uma razão suficiente par que venham a conhecê-la dentro de alguns séculos. Entretanto, ela vai fazendo progressos maravilhosos entre nós, sobretudo nos grandes exércitos constituídos por homens estipendiários, bem-educados, que decidem dos destinos dos Estados. Pode assegurar-se que, quando trinta mil homens combatem em linha de batalha contra um exército composto por igual número de homens, há cerca de vinte mil sifilíticos de cada lado.
Time passes. Entirely alone in the world and starving, Candide impulsively gives the few coins he had begged to an old man with a tin nose, worse off than himself: syphilis has rotted away several of his fingers, and left him cruelly disfigured. It is Pangloss, brought back to life in the mortuary by the pain of the anatomist’s scalpel. His faith unshaken by his experiences, he explains his condition.

8. Dear Boy
PANGLOSS
Dear boy, you will not hear me speak
With sorrow or with rancor
Of what has shrivelled my cheek
And blasted it with canker;
‘Twas Love, great Love, that did the deed,
Through Nature’s gentle laws,
And how should ill effects proceed
From so divine a cause?

Dear boy:
Sweet honey comes from bees that sting,
As you are well aware;
To one adept in reasoning,
whatever pains disease may bring
Are but the tangy seasoning
To Love’s delicious fare.
Dear Boy.

CHORUS
Sweet honey comes from bees that sting.
Dear boy.

PANGLOSS
Columbus and his men, they say,
Conveyed the virus hither,
Whereby my features rot away
And vital powers wither;
Yet had they not traversed the seas
And come infected back,
Why, think of all the luxuries
That modern life would lack!

Dear boy:
All bitter things conduce to sweet,
As this example shows;
Without the little spirochete,
We’d have no chocolate to eat
Nor would tobacco’s fragrance greet
The European nose.
Dear boy.

CHORUS
All bitter things conduce to sweet.

PANGLOSS
Each nation guards its native land
With cannon and with sentry,
Inspectors look for contraband
At every point of entry,
Yet nothing can prevent the spread
Of Love’s divine disease;
It rounds the world from bed to bed
As pretty as you please.

Dear boy:
Men worship Venus everywhere,
As may be plainly seen;
Her decorations which I bare
Are nobler than the croix de guerre,
And gained in service of our fair And universal Queen. Dear boy.

CHORUS
Men worship Venus everywhere.
Dear boy.

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