quarta-feira, 5 de setembro de 2007

9. CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DO «CÂNDIDO» VOLTAIREANO

Foi certamente o cansaço por filosofias subservientes a teologias de apriorismos positivos simplistas, distantes de uma descrição realmente exacta do humano, e, portanto, em atitude de não abarcamento da crueza das realidades humanas concretas, entre as quais a guerra, que deve ter levado Voltaire a uma reacção à boa maneira iluminista e à sua boa maneira, isto é, usando daquela superficialidade contundente para denunciar, pela sátira e mediante o panfleto (senão no suporte físico, claramente pela substância textual), a violência e a maldade vitimadoras de que se reveste a passagem dos homens por esta terra. E de alguns homens mais que outros. Além da questão da providência divina, que é posta em causa na medida em que pela guerra se expandem a fé e os reinos, porque esses processos funcionam na conveniência e conivência dos poderes, e porque ainda os príncipes dessa violência surgem em muitos casos revestidos do manto da autoridade terrestre ou celeste, não seria de admirar a irritação que a publicação do «Cândido» gerou em certas instâncias, como por exemplo o Vaticano, conduzindo a medidas de força como a sua inclusão no Index de obras proibidas. Pode pensar-se que, publicasse o que publicasse, Voltaire veria sempre os seus livros indexados, mas não há dúvida de que, por exemplo, ao conduzir, ao longo de toda a novela, um ataque arrasador à poderosíssima Companhia de Jesus, só reforçaria, aos olhos daquela instituição, o papel corrosivo e perigoso da obra. Não deixa de ser curioso, no capítulo XXX, a sugestão de Martin, o pessimista de serviço, de deitar borda fora o barão, irmão de Cunegundes, e membro da ordem jesuíta:

Cândido, no fundo do seu coração, não tinha vontade alguma de desposar Cunegundes, mas a extrema impertinência do barão incitava-o a apressar o casamento e Cunegundes instava com ele tão vivamente que ele não podia voltar atrás. Consultou Pangloss, Martin e o fiel Cacambo. Pangloss pronunciou um lindo discurso, com o qual demonstrava que o barão não tinha qualquer direito sobre a irmã e que ela podia, segundo todas as leis do Império, desposar Cândido. Martin concluiu por propor que atirassem o barão ao mar. Cacambo decidiu que o melhor seria entregá-lo ao patrão levantino, fazê-lo voltar para as galês, e enviá-lo por fim para Roma, para o geral da Companhia, pelo primeiro barco que aparecesse. Toda a gente aprovou este plano que teve a concordância da velha, e decidiram não dizer nada à irmã. O plano executou-se à custa de algum dinheiro, tendo todos ficado satisfeitos por castigarem um jesuíta e punirem o orgulho de um barão alemão.

(Cândido, Cap. XXX, § 1).
Prevalece, porém, a sugestão do nativo, Cacambo, mais trabalhosa, mais humilhante e castigadora. A sugestão de Martin recorda, no nosso contexto português, o radicalismo obstinado e muitas vezes a imaginação em segunda mão revelada pelo iluminista e iluminado Pombal, na forma como deu combate aos Jesuítas do Reino. Todo o texto é, portanto, uma espécie de volta ao mundo da violência e esta o corpus da denúncia primeira da novela voltaireana: a violência da honra, a violência da ganância, a das seitas religiosas, a da tomada indevida de bens, a que aspira ao domínio absoluto do mundo. O final do capítulo IV narra a tempestade que surpreendeu Cândido, Pangloss e Tiago (o caritativo anabaptista que, ainda na Holanda, os auxiliara) a bordo de um navio e já à vista de Lisboa, para onde viajaram em negócios. E o capítulo V prolonga a referência à tempestade, consequente naufrágio e o tremor de terra: é o mal natural, perante o qual os seres humanos pouco ou nada podem fazer. Mas temos, depois, a reacção irracional da sociedade lisboeta diante daquele mal, encontrando nas nossas personagens, Cândido, Pangloss e Tiago, assim que deles se apoderaram, os bodes expiatórios. Voltaire, abordando os dois males, é ao segundo que denuncia impiedosamente. É conhecido, e já foi mencionado, o tremendo impacto, nos espíritos mais relevantes da época, da trágica sequência de eventos desencadeada pelo Grande Terramoto de Lisboa, de 1755: de um lado os subsequentes Grandes Tsunamis, os posteriores Grandes Incêndios (mal natural), de outro, as Grandes Pilhagens e as Grandes Punições Policiais (mal social). Se o «Cândido» não constitui uma resposta imediata e directa a essa interpelação da natureza – o mal natural – não deixando de espelhá-la, é fundamentalmente uma forte denúncia do mal social, das acções e opções humanas, na sua mais extrema crueldade, na sua mais requintada selvajaria, que, tendo por promotores fundamentalmente as chamadas monarquias cristãs e por vezes cristianíssimas, mas obviamente também os sultanatos e os regimes obscurantistas vigentes nas partes fascinantes do Oriente, se podem e devem combater, estando, doa a quem doer, na primeira linha desse combate, a literatura ou não tivesse ela, sob o génio voltaireano, toda a força corrosiva, todo o carácter expressivo capaz de carrear o repúdio que a intolerância e a violência, sob todos os pretextos e pontos de vista, deverá merecer. Dir-se-ia ser a lógica interna do autor que a cada acto de intolerância correspondesse um texto verdadeiramente demolidor, capaz de abolir o manto diáfano da hipocrisia e do silêncio cúmplice.

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