«A mulher do orador, tendo aparecido à janela
e apercebendo-se de que havia um homem que duvidava
que o papa fosse o Anticristo, despejou-lhe em cima um vaso cheio de imundícies.
Oh, Céus, a que excessos o zelo da religião leva as damas!»
Cândido, de Voltaire, Cap. III, § 11.
Excitado com as possibilidades abertas pelos estudos interartes, de acordo com as reflexões aduzidas por Claus Clüver (2001), a partir de um novo paradigma nos estudos comparatísticos, que passam a englobar um universo de elementos mais complexo e vasto e que levam em conta, não somente a perspectiva estreita da comparação no plano das obras literárias entre si, mas também do texto literário com outras obras de arte, não tive dúvidas quanto ao campo em que me movimentaria e ao corpus que desejaria recobrir, no âmbito de Literatura Comparada I. A música. A música precedida pela literatura, no tempo e no contexto de produção, mas também a música que, como parte integrante de uma estrutura mais vasta, gerará, e exigirá ela mesma, e a seu tempo, nova literatura. Sem hesitações, decidi-me a empreender um trabalho, que, colocando em diálogo, dentro do possível e praticável, três níveis artísticos – o literário, as artes de palco e a música –, tivesse como objectivo fundamental a conjugação e a articulação comparatísticas da opereta cómica «Cândido», de Leonard Bernstein, uma dentre várias actualizações artísticas posteriores, com a novela filosófica de base «Cândido», de Voltaire, beneficiando do facto de, contínuo consumidor de música clássica e classicizante, já haver tido um prolongado, embora cíclico, contacto com aquela. Era preciso, de igual modo, que o meu trabalho demonstrasse quais os novos pressupostos artísticos e técnicos, retóricos e discursivos, que se encontram num específico processo de transposição intertextual, tendo em conta a necessária tradução interssemiótica, e as estratégias concertadas em decurso na indústria de entretenimento da Broadway, assim como as implicações levantadas pelas expectativas de um ambiente e de um público nova-iorquinos, exigências de uma recepção formada e modelada segundo determinados gostos, apta a submeter-se a determinados cânones e a decanonizar automaticamente produtos mal sucedidos e, por isso mesmo, era preciso que me interrogasse sobre que cedências, que mecanismos reguladores estariam a montante desta adaptação, considerando o período histórico em causa, os anos cinquenta do século vinte.
Pensar em tal trabalho era levar em linha de conta, portanto, os factores e contextos envolventes, a jusante e a montante, daquelas duas produções e não deixar negligenciadas, como domínios indeclináveis nos estudos comparatísticos e no campo dos estudos interartes, algumas das conclusões-prescrições do relatório Bernheimer, quando dá conta dos novos pressupostos que os programas de pós-graduação deverão albergar: «Os fenómenos literários já não são o foco exclusivo da nossa disciplina. Pelo contrário, os textos literários são agora abordados como uma prática discursiva entre muitas outras num campo complexo, movente e muitas vezes contraditório da produção cultural.» Por outro lado, incumbia-me ter suficiente consciência dos processos descritivos que repercutem a reciprocidade das relações entretecidas entre a literatura e a música, ainda que em esquemas, como o «esquema [de Steven Paul Scher (1982)] que (...) não consegue integrar conexões mais complexas do que (....) relações binárias», embora Clüver reconheça que ««Todas as categorias das relações músico-literárias no esquema de Scher, bem como os seus equivalentes nas inter-relações entre as outras artes, são perfeitamente acessíveis a empreendimentos interpretativos. Ilustrações e musicalizações de textos verbais e verbalização de pinturas, danças ou composições musicais, enquanto abordadas como objectos de interpretação, podem ser por sua vez lidas como interpretações, e portanto consideradas portas de entrada para se interpretar os textos a que elas se referem.» Em suma, incumbia-me operar a partir da consciência da obra de arte como texto que deve ser lido e a concepção do texto como em estado de permanente reescrita, no lugar de um texto estável, uma vez que: «Com a ascensão da semiótica, os estudiosos têm-se acostumado cada vez mais a tratar obras de arte como estruturas (usualmente complexas) de signos e a referir-se a esses objectos como «textos», qualquer que seja o sistema sígnico envolvido. Dessa forma, uma dança, um soneto, uma gravura, uma catedral, um filme e uma ópera são todos «textos» a serem «lidos». Assim também uma cédula, um selo postal, um programa de TV e uma procissão religiosa.», Claus Clüver (2001).
e apercebendo-se de que havia um homem que duvidava
que o papa fosse o Anticristo, despejou-lhe em cima um vaso cheio de imundícies.
Oh, Céus, a que excessos o zelo da religião leva as damas!»
Cândido, de Voltaire, Cap. III, § 11.
Excitado com as possibilidades abertas pelos estudos interartes, de acordo com as reflexões aduzidas por Claus Clüver (2001), a partir de um novo paradigma nos estudos comparatísticos, que passam a englobar um universo de elementos mais complexo e vasto e que levam em conta, não somente a perspectiva estreita da comparação no plano das obras literárias entre si, mas também do texto literário com outras obras de arte, não tive dúvidas quanto ao campo em que me movimentaria e ao corpus que desejaria recobrir, no âmbito de Literatura Comparada I. A música. A música precedida pela literatura, no tempo e no contexto de produção, mas também a música que, como parte integrante de uma estrutura mais vasta, gerará, e exigirá ela mesma, e a seu tempo, nova literatura. Sem hesitações, decidi-me a empreender um trabalho, que, colocando em diálogo, dentro do possível e praticável, três níveis artísticos – o literário, as artes de palco e a música –, tivesse como objectivo fundamental a conjugação e a articulação comparatísticas da opereta cómica «Cândido», de Leonard Bernstein, uma dentre várias actualizações artísticas posteriores, com a novela filosófica de base «Cândido», de Voltaire, beneficiando do facto de, contínuo consumidor de música clássica e classicizante, já haver tido um prolongado, embora cíclico, contacto com aquela. Era preciso, de igual modo, que o meu trabalho demonstrasse quais os novos pressupostos artísticos e técnicos, retóricos e discursivos, que se encontram num específico processo de transposição intertextual, tendo em conta a necessária tradução interssemiótica, e as estratégias concertadas em decurso na indústria de entretenimento da Broadway, assim como as implicações levantadas pelas expectativas de um ambiente e de um público nova-iorquinos, exigências de uma recepção formada e modelada segundo determinados gostos, apta a submeter-se a determinados cânones e a decanonizar automaticamente produtos mal sucedidos e, por isso mesmo, era preciso que me interrogasse sobre que cedências, que mecanismos reguladores estariam a montante desta adaptação, considerando o período histórico em causa, os anos cinquenta do século vinte.
Pensar em tal trabalho era levar em linha de conta, portanto, os factores e contextos envolventes, a jusante e a montante, daquelas duas produções e não deixar negligenciadas, como domínios indeclináveis nos estudos comparatísticos e no campo dos estudos interartes, algumas das conclusões-prescrições do relatório Bernheimer, quando dá conta dos novos pressupostos que os programas de pós-graduação deverão albergar: «Os fenómenos literários já não são o foco exclusivo da nossa disciplina. Pelo contrário, os textos literários são agora abordados como uma prática discursiva entre muitas outras num campo complexo, movente e muitas vezes contraditório da produção cultural.» Por outro lado, incumbia-me ter suficiente consciência dos processos descritivos que repercutem a reciprocidade das relações entretecidas entre a literatura e a música, ainda que em esquemas, como o «esquema [de Steven Paul Scher (1982)] que (...) não consegue integrar conexões mais complexas do que (....) relações binárias», embora Clüver reconheça que ««Todas as categorias das relações músico-literárias no esquema de Scher, bem como os seus equivalentes nas inter-relações entre as outras artes, são perfeitamente acessíveis a empreendimentos interpretativos. Ilustrações e musicalizações de textos verbais e verbalização de pinturas, danças ou composições musicais, enquanto abordadas como objectos de interpretação, podem ser por sua vez lidas como interpretações, e portanto consideradas portas de entrada para se interpretar os textos a que elas se referem.» Em suma, incumbia-me operar a partir da consciência da obra de arte como texto que deve ser lido e a concepção do texto como em estado de permanente reescrita, no lugar de um texto estável, uma vez que: «Com a ascensão da semiótica, os estudiosos têm-se acostumado cada vez mais a tratar obras de arte como estruturas (usualmente complexas) de signos e a referir-se a esses objectos como «textos», qualquer que seja o sistema sígnico envolvido. Dessa forma, uma dança, um soneto, uma gravura, uma catedral, um filme e uma ópera são todos «textos» a serem «lidos». Assim também uma cédula, um selo postal, um programa de TV e uma procissão religiosa.», Claus Clüver (2001).